Dólar, petróleo
e novas práticas de comércio internacional
Dollar, oil and
new practices in international trade
Bouzid
Izerrougene
Henrique Tomé
da Costa-Mata*
Abstract
This paper
attempts to understand the movements of oil price increase and the American
dollar depreciation, between 2001 and 2008. In this conjuncture of uncertainty,
the USA suffers from important retraction in economic and geopolitical spheres.
American Foreign and budgetary deficits induce an unbalance dynamic which tends
to disorder the world economy.
Keywords: US unbalances, dollar, euro, oil,
China.
Resumo
Esse trabalho
busca entender o significado dos movimentos de alta sustentada do preço do
petróleo e de queda rápida da cotação do dólar, entre 2001 e 2008. Naquele
contexto de incerteza, a maior potência, Estados Unidos, começou a sofrer de
uma importante retração nos planos econômico e geopolítico. Os colossais
déficits externo e fiscal estadunidenses passaram a gerar uma dinâmica de
desequilíbrio nas finanças internacionais e acentuar os sobressaltos do mundo
em transição.
Palavras-chave: desequilíbrios estadunidenses,
dólar, euro, petróleo, China.
* Universidade Federal da Bahia, Brasil. Correo-e: bouzid@ufba.br, hnrmata@hotmail.com.
Introdução
Com a
supremacia do dólar nas transações internacionais, os mercados de capitais e os
mercados cambiais ainda estão fortemente dependentes da política monetária dos
Estados-Unidos (EUA). Todavia, a generalização do regime de câmbio flutuante no
mundo tende a reduzir a importância do dólar na sua função de reserva
internacional de valor, em razão da subseqüente multiplicação e diversificação
dos mercados cambiais. Nos mercados mundiais de bens e serviços, embora a moeda
norte-americana mantenha firme a sua
supremacia enquanto unidade de conta, o seu predomínio como meio de pagamento
declina também. Mesmo que o dólar seja
a moeda de faturamento das commodities em geral, paises como Irã, Venezuela,
Rússia e outros não são obrigados a vender seu petróleo em dólar. Podem
preferir o euro, suas próprias moedas ou até mesmo o escambo, como no caso das
transações comerciais entre o Irã e a China, a China e o Sudão e outras
modalidades de comércio cada vez mais significativas. Nessas transações, os
valores não se alteram, efetuando-se conforme
as taxas cambiais e a cotação das matérias primas em dólar. Somente a
demanda por dólares é que acusa uma contração relativa nos mercados monetários,
reduzindo os imensos privilégios que os EUA
costumam usufruir enquanto emissores da moeda-padrão internacional.
Esse desafio
em curso para os EUA vem acoplado
de uma situação de crescentes déficits externos e fiscais, cujas condições de
financiamento apresentam uma nítida deterioração. Desde então, se coloca a
questão da reação das autoridades estadunidenses e de suas conseqüências sobre
a economia mundial. A vontade expressa dos norte-americanos em aumentar o seu
controle sobre as reservas de petróleo atesta de uma estratégia provada de
procurar parte do financiamento dos déficits através do encarecimento do
petróleo. Mas essa relação deve contar com a nova dinâmica desencadeada pela
expansão da China, um país que se torna, por sua grande capacidade de
financiamento e forte penetração nos mercados internacionais, concorrente
direto dos EUA, sobretudo nos mercados
de commodities, o petróleo em particular.
Para entender
o sentido da desvalorização rápida do dólar e da elevação contínua do preço do
petróleo entre 2001 e 2008, o artigo pretende examinar a relação econômica e
financeira entre as potências econômicas diante das mudanças em curso. Isso
supõe uma reflexão sobre a estratégia dos EUA
para resolver seus desequilíbrios internos e externos e sobre as conseqüências
que essa estratégia possa acarretar em termos de re-ordenamento econômico e
político mundial.
Para tanto,
serão discutidos, na próxima seção, os desequilíbrios da economia
norte-americana, os quais geram uma situação nova de endividamento e apresentam
uma configuração inédita no cenário internacional. Na terceira seção, serão
analisados os ciclos financeiros da década de 2000, destacando-se a ofensiva
estadunidense em relação à concorrência européia no sistema monetário
internacional, notadamente por meio do encarecimento do petróleo como forma de
conter a queda do dólar. A quarta seção será dedicada precisamente à relação
entre petróleo e dólar, e mostrará como tradicionalmente o aumento do preço do
barril eleva a demanda mundial por ativos em dólar e como essa relação está
perdendo vigor nos últimos anos, em virtude das mudanças verificadas nos fluxos
internacionais de capitais. Essas mudanças geram uma situação de
endividamento profundo dos EUA que
mina necessariamente o status hegemônico da moeda norte-americana. A seção subsequente terá como
objetivo mostrar como os países superavitários da Ásia e os EUA estão condenados a se sustentarem
mutuamente, qualificando essa situação de equilíbrio do terror financeiro.
Na sexta seção, será analisado o afrouxamento da necessidade de mobilizar
dólares para o faturamento internacional, por causa das novas práticas de
comércio internacional que restringem o uso do dólar como meio de pagamento.
Essas práticas estão sendo amplamente incentivadas pela China, cujas decisões
estão cada vez mais influentes no mercado mundial. Por fim, conclui-se sobre as
tendências à mudança na política internacional dos EUA.
1. Os
desequilíbrios estadunidenses - uma configuração inédita
O considerável
e crescente déficit externo dos EUA
e a acumulação subseqüente de superávits comerciais na maior parte do resto do
mundo constituem um dos paradoxos mais flagrantes da economia mundial nessa era
de globalização. Os déficits das transações correntes estadunidenses, que
representam a conta comércio exterior e a de transferências de renda, depois
que passaram por dois processos de saneamento em 1980 e 1991, persistem numa
trajetória de alta constante, gerando uma situação nova de endividamento
internacional. A posição externa dos EUA
se deteriora nitidamente e o país mais rico do mundo está sendo o maior devedor
de todos. O aprofundamento da diferença entre o volume dos haveres
norte-americanos e o seu engajamento bruto no mundo ajudou a inverter a
tradicional posição favorável à balança de pagamentos dos EUA, quando em 2006 o saldo líquido da
conta rendimentos de capitais se tornou negativo, com um déficit equivalente a
2% do pib estadunidense (Federal
Reserve, 2009). Simplesmente, os EUA
recebem mais investimentos do resto do mundo do que investem fora do país e
estão se tornando, pela primeira vez na história da hegemonia americana, pagadores
líquidos de renda de fatores. Isso significa que a dívida dos EUA tenderá a se aprofundar e que o
financiamento dos déficits se tornará necessariamente insustentável.
Em 2001, a política econômica estadunidense realizou uma reviravolta
total, aplicando uma política monetária e orçamentária expansionista. Através
de um processo de grandes dimensões, o banco central dos EUA, o fed,
reduziu sua taxa básica de juros de 6,5 para 1%, desencadeando a queda do
conjunto das taxas com impacto expansionista sobre a demanda global. Quanto à
política fiscal, o confortável excedente de 224,8 bilhões de dólares que o
governo Bush herdou do governo Clinton se transformou logo em déficit. Após o
11 de Setembro de 2001, para evitar a recessão que poderia vir da grave crise
de confiança pós-atentados, o governo Bush ampliou gastos e cortou impostos.
Isso elevou o crescimento econômico e, claro, gerou um enorme déficit que, logo
em 2002, alcançou o nível de 254 bilhões de dólares, um déficit que irá se
acentuar para atingir os 318 bilhões de dólares em 2006, chegando ao ponto
máximo de 4.9% do pib.[1] No
ano de 2007, o déficit fiscal norte-americano caiu levemente para 296 bilhões,
mas continua elevado (O Globo, 2008).
No setor
externo, o déficit nas contas correntes dos EUA,
que era de 413 bilhões de dólares em 2000, passou para 474 bilhões em 2002 e
continuou na trajetória ascendente, chagando ao nível de 856,7 bilhões em 2006
(dca, 2007). Por seis anos
consecutivos, as transações correntes registraram um déficit recorde que, em
2006, atingiu US$ 856,7 bilhões, equivalente a
6.5% do pib. Fundamentalmente
atrelados à fraqueza da poupança doméstica e ao aprofundamento do déficit
público, os desequilíbrios correntes americanos se sustentaram durante mais de
quinze anos graças ao apetite dos investidores internacionais pelos títulos
americanos, em razão dos lucros auferidos e, também, devido à situação
privilegiada do dólar no comércio mundial. Porém, em razão do desfalque dos
capitais europeus nos últimos anos, o financiamento dos déficits americanos
passou a contar essencialmente com a intervenção maciça dos bancos centrais
asiáticos. Em 2007, o banco da China contribuiu ao financiamento desses
déficits por um montante de cerca de um trilhão de dólares (ecb, 2007).
Os déficits
gêmeos (público e externo) a financiar tomaram dimensões astronômicas de mais
de 1,2 trilhão de dólares nos últimos anos. Para o seu financiamento, a
economia norte-americana absorve mais de 70% das transferências mundiais de
poupança (Unctad, 2007). Porém, esses fluxos de capital não são suficientes
para fechar as contas estadunidenses. A cobertura dos déficits correntes
americanos não passa de 80% e o hiato
financeiro chega a um valor de 1,8 bilhão de dólares por dia. Pode-se pensar,
nessas circunstâncias, que a queda do dólar se constitui numa variável de
ajustamento dos grandes desequilíbrios nas contas externas do país. Os
norte-americanos monetizam uma parte dos seus déficits (aquela que não está
coberta por capitais estrangeiros), emitindo dólares, o que implica
necessariamente a depreciação da moeda americana nos mercados monetários.
A posição do
dólar como meio de pagamento e reserva de valor no mundo se viu seriamente
afetada após o lançamento do euro, em janeiro de 1999, quando a moeda européia
começou a ser usada como uma das variáveis de ajustamento dos desequilíbrios
mundiais. Lançada a uma cotação de 1,183 dólar, a moeda européia única se
desvalorizou em seguida, atingindo seu nível mais baixo de 0,84 dólar em 2000.
No ano subseqüente, o euro reagiu para alcançar a sua taxa mais elevada em
dólar, 1,195, com uma progressão de 40%. Em fevereiro de 2004, a sua cotação
estava em 1,30 dólar e se manteve alta nos anos 2005 e 2006. No dia 8 de
novembro de 2007, o euro registrou uma ascensão extraordinária, quando atingiu
o recorde de 1,44 dólar. Diante desse cenário de queda da moeda americana, a
China e outros paises superavitários tenderam a substituir uma parte de suas
reservas (1,44 trilhão de dólares nas reservas chinesas em 2007) em dólar por outras
moedas para minimizar as perdas cambiais, o que acentuou a desvalorização da
moeda americana.
Gráfico i
Euro contra dólar
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Banco Central Europeu (2009).
Os problemas
monetário e fiscal não são os únicos que estão em jogo, há também a questão do
preço do petróleo que, desde 1999 até 2008 entrou numa trajetória ascendente.
Em outubro de 2004, o barril ultrapassou o limite dos 54 dólares; em agosto
2005, passou para 70,85 dólares; e, em novembro de 2007, chegou a 98,62
dólares, aproximando-se do seu nível recorde registrado em abril de 1980
(101,70 dólares ao preço deflacionado), após a revolução iraniana e durante a
guerra Irã-Iraque.
As mudanças
cambiais e as políticas monetárias, junto com a conseqüente evolução do preço
de petróleo, são variáveis importantes que definem os ciclos financeiros. De
1999 até hoje, a economia mundial passou por dois ciclos financeiros, tendo o
ano de 2004 como data de início do segundo.
2. Os ciclos
financeiros da década de 2000
É importante
lembrar a situação econômica nos EUA
antes que o fed procedesse ao
aperto monetário de 1999 (início do primeiro ciclo). A década de 1990 foi tão
proveitosa para a economia americana que alguns comentaristas econômicos
evocaram o new age americano. A performance estadunidense havia
superado significativamente a de outros paises ocidentais e do Japão e isso foi
explicado pelo sucesso da nova economia e do aumento da produtividade. Com um
crescimento econômico relativamente elevado e as contas públicas
superavitárias, os capitais asiáticos, árabes e europeus disputavam o ingresso
no mercado estadunidense, valorizando o dólar.
Em 1998, a
economia mundial entrou numa zona de alta instabilidade. Naquele momento, a
oposição conjuntural entre a recessão profunda na qual mergulhavam o Japão e os
paises do Sudeste Asiático e o bom vigor aparente das economias européias e dos
EUA parecia incoerente com o
processo de globalização. A força desestabilizadora da recessão que se propagou
ao longo do ano de 1997, partindo do Sudeste Asiático para atingir a Rússia em
1998 e a América Latina, em 1999, foi o resultado, pela primeira vez, de um
ataque especulativo à escala global.
Em junho de 1999, o fed
procedeu a um aperto monetário para combater a inflação e corrigir os inchaços
nominais das bolsas de valores, que foram motivados pelo excesso de capitais.
Mas as conseqüências do aumento da taxa de juro nos EUA foram as duas grandes quebras que sofreu Wall Street em
abril e setembro de 2000. A procissão de crises financeiras que eclodiram no
mundo, no final da década de 1990, marcou o fim de um ciclo financeiro
(1994-1998) e abriu espaço para o novo ciclo de 1999-2004. O início deste novo
ciclo coincidiu com a criação do euro.
2.1. O primeiro
ciclo, junho 1999-junho 2004
O início do
ciclo. O euro foi
cotado a 1,183 dólar no dia do seu lançamento em janeiro de 1999. A introdução
da nova moeda, com cotação acima de 1 dólar, levou alguns analistas a prever
uma diversificação das carteiras de títulos internacionais da Ásia, os quais
concentram uma grande parte das reservas
internacionais. A análise que prevaleceu naquela época e que ainda
prevalece hoje é que se os paises asiáticos superavitários determinassem
substituir de forma significativa parte de seus haveres em dólar por haveres em
outras moedas –para evitar a instabilidade da moeda americana e ampliar suas
margens de manobra frente às pressões econômicas e políticas dos EUA–, o financiamento do crescente
déficit da balança de pagamentos americana se complicaria e, a termo, o
estatuto de moeda internacional hegemônica do dólar estaria ameaçado.
O euro manteve
sua paridade frente ao dólar e o Banco Central Europeu (bce) aproveitou essa vantagem cambial para rebaixar sua taxa
básica de juros de 3 para 2.5%, em abril de 1999. Mas, dois meses depois, em
junho, a Reserva Federal Americana (fed)
aplicou uma constrição monetária, aumentando sua taxa básica de 4.75 para 5%.
Era o início do primeiro ciclo financeiro, a partir do qual o fed, em seis vezes consecutivas, havia
aumentado sua taxa de juros, a qual chegou ao nível de 6.5% em maio de 2000.[2]
Nesse tempo, o
dólar começou a se valorizar, passando de 1.01 euro, em julho de 1999, para
1.17 euro em outubro de 2000. Em quinze meses, o euro perdeu em torno de 20% do
seu valor frente ao dólar. A sua queda favoreceu as exportações européias, mas
inibiu os investidores internacionais que irão preferir os títulos americanos,
acentuando assim a queda do euro. O bce
foi obrigado a aumentar sua taxa básica para limitar a fuga de capitais. No dia
15 de novembro a taxa européia passou a 3%. O preço do barril de petróleo, que
era de 10 dólares em janeiro de 1999, aumentou para 14 dólares em abril do
mesmo ano, saltando para os 26 dólares em janeiro 2000. Com o encarecimento do
petróleo e das demais matérias primas, a inflação importada ameaçava o mercado
europeu. No dia 4 de janeiro, o bce
antecipou uma mudança na sua taxa de juros, que foi elevada a 3.25%, dando
início a uma serie de altas que culminaram com um nível de 4.75% no dia 6 de
outubro de 2000. No dia 6 de setembro, a cotação do petróleo atingiu os 36
dólares o barril, enquanto o dólar se manteve entre 1.16 e 1.17 euro.
A estratégia
americana de elevar a taxa de juros visava atender a dois objetivos essenciais
e associados: atrair os capitais estrangeiros, notadamente europeus, para
financiar as transações correntes e, no mesmo tempo, suprir, com esses
capitais, a demanda adicional de liquidez em dólar, a qual se devia ao
encarecimento das commodities.[3]
A reciclagem desses capitais minimiza, em geral, o recurso a uma emissão
monetária maciça para assegurar as importações e, ainda, permite manter a força
do dólar acima das outras moedas internacionais, sobretudo do euro. No entanto,
as elevadas taxas americanas de juro, acopladas a um dólar em alta, prejudicam,
não somente os agregados internos (nível fraco de consumo, crédito muito caro
para as famílias e empresas), mas também a competitividade da indústria
americana. De fato, o dólar caro freou as exportações americanas e, junto com o
juro alto, contribuiu para as derrocadas da bolsa de Wall Street em abril e
setembro de 2000.
A guinada
do ciclo. A
elevação das taxas americanas de juro, embora moderada, contraiu o consumo e o
investimento domésticos. No primeiro trimestre de 2001, o crescimento da
economia americana, que foi de 1.9% no último trimestre de 2000, passou para
1.3% e, em seguida, caiu para 0.7% no seu ritmo anual, embora o fed tivesse antecipado a recessão desde
janeiro de 2001, quando reduziu a taxa básica de 6.5 para 6%, marcando com isso
a virada do ciclo. Para reanimar as bolsas de valores, as autoridades
monetárias dos EUA procederam a
seis reduções na taxa básica de juros durante o primeiro semestre, fazendo com
que a taxa interbancária (de curto prazo) passasse nesse pouco tempo de 6.5 a
3.75%. Os juros de curto prazo ficaram mais elevados na Europa em relação aos EUA pela primeira vez desde a criação do
euro. Depois da tragédia do 11 de setembro de 2001, no mesmo ano em que houve o
crash dos valores tecnológicos, a taxa de juro americana de curto prazo
sofreu mais cinco cortes no último trimestre de 2001, passando para 1.75% no
final do ano. O processo de contração prosseguiu e, em junho de 2003, a taxa em
questão caiu para 1%, o nível mais baixo desde 1951.
Do lado
europeu, o bce operou, em maio
2001, isto é, quatro meses depois da intervenção da fed, um corte de ¼ ponto percentual na sua taxa básica, a
qual havia se mantido estável desde novembro de 1999 (4.75%). Como nos EUA, a taxa básica européia continuou na
trajetória de queda até 2003, quando chegou a 2%. O contexto de taxas de juro
em queda nos dois continentes não foi suficiente, contudo, para evitar uma
redução na taxa de crescimento da economia mundial, mas, com o subsistente
diferencial de juros, o euro se fortaleceu e atingiu, no dia 27 de maio de
2003, a barra de 1.19 dólar, acima do seu nível de introdução, em janeiro de
1999.
2.2. A ofensiva americana e o segundo ciclo financeiro dos anos 2000
Se a década de
1990 foi estável e confortável para os EUA,
a década de 2000 está, em oposição, repleta de inconveniências que ameaçam a
posição americana no mercado mundial, o que explica, num primeiro momento, a
acentuação da belicosidade dos EUA
na política internacional. Qual é o parafuso ruído que alui a máquina
lubrificada do Império americano? O grão de areia é precisamente a redução da
importância do dólar como moeda internacional: são as crescentes transações
internacionais que se efetuam sem o uso do dólar; são os intercâmbios que se realizam
entre as nações e as firmas transnacionais por outros meios como o euro, as
moedas regionais dentro de blocos econômicos e até mesmo via escambo. Daí o
interesse do governo americano em dominar as reservas de petróleo no mundo e
entregar a sua exploração às firmas americanas, um meio de enfraquecer as
moedas que tentam partilhar o privilégio do dólar. Um privilégio que consiste
essencialmente em transferir o ônus financeiro dos déficits da economia
hegemônica ao resto do mundo.
Os americanos
invadiram o Iraque em 20 de março de 2003 e, em três semanas, derrubaram a
ditadura do temerário Saddam Hussein, dando um fim a um regime que se atreveu,
a partir de setembro de 2000, a faturar em euro suas exportações de petróleo.
No dia 2 de maio de 2003, o presidente Bush anunciou precipitadamente o fim da
resistência no Iraque e, num clima de euforia, os neoconservadores americanos
sugeriam a utilização da mesma força contra a Síria, O Irã e, até mesmo a
Arábia Saudita (uma antiga aliada). Na crise que surgiu do unilateralismo
americano dentro das Nações Unidas estava claro que a ofensiva contra o Iraque
obedecia a uma estratégia diferente do pretexto extravagante de que os
americanos iriam civilizar os beduínos do Oriente Médio.[4]
Tratava-se mesmo de defender a hegemonia econômica e monetária dos EUA no mundo. Aos paises árabes,
majoritários na opep, a invasão do
Iraque lhes serviria de aviso contra qualquer pretensão de mudança no plano
monetário do petróleo.[5]
Gráfico ii
Taxa básica de juros nos EUA, 1999-2008
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Federal Reserve System (2009).
No entanto, o
que os estratégicos da Casa Branca não previram é que a guerra no Iraque
perdurasse e saísse muito mais cara para os cofres públicos americanos,
contribuindo assim para a depreciação do dólar. Nos meados de novembro de 2003,
a moeda americana registrou a sua mais baixa cotação histórica frente ao euro
(0.83 euro por 1 dólar). Conseqüentemente, um número importante de investidores
internacionais tendeu a aplicar partes crescentes de suas poupanças na Europa,
acentuando a desvalorização da moeda americana que, em fevereiro de 2004, caiu
para 0.77 euro. Diante disso, em junho, o fed
aumenta de ¼ ponto sua taxa básica, que passou de 1 para 1.25%. Uma nova fase de ascensão do juro se
iniciou então, dando lugar ao segundo ciclo financeiro desde a criação do euro
em janeiro de 1999. A taxa americana de curto prazo continuou em alta ao longo
dos anos 2004 e 2005, alcançando em setembro 2005 o nível de 3.75%.[6] Mas isso não foi suficiente
para reverter a baixa do dólar, o qual terminou o ano 2004 cotado a 0.74 euro.
A política americana de contração monetária, iniciada em junho de 2004
foi comparada à mesma política que o fed
adotou em junho de 1999, quando reverteu o processo de queda na sua taxa básica
de juros. Naquela época, a contração monetária obedeceu essencialmente à
necessidade de contrair a pressão inflacionária que se deveu ao excesso de
liquidez. Mas, em 2004, a conjuntura econômica americana estava diferente, marcada
pelo enfraquecimento do dólar, pela redução dos ingressos de capital
estrangeiro e pela expansão dos déficits gêmeos. Em junho de 2004, as
autoridades monetárias dos EUA, ao
elevarem de forma moderada a taxa de curto prazo, estavam conscientes de que a
política monetária, por si só, não era mais suficiente para tornar atraentes os
investimentos em dólar, no mesmo tempo em que o controle da inflação não
poderia ser garantido sem a volta maciça dos capitais estrangeiros. Havia,
portanto, a necessidade de encontrar outro recurso para compensar a falta do
financiamento externo. A repatriação dos lucros das firmas americanas, que foi
estimulada pelos incentivos fiscais, é limitada e sua realização custosa pesa
sobremaneira nas contas pública que estão profundamente deficitárias.
Parece que o único cenário possível para o novo ciclo, num contexto
eleitoral, está nessa estratégia definida pelos EUA
e que já está em curso. Ela consiste em reduzir o imposto para contrariar a
recessão e modular o preço do petróleo em benefício do dólar. A pressão sobre o
preço do barril obrigaria os países importadores de petróleo a aumentar a parte
de suas reservas em dólar e enxugar o excesso deste nos mercados monetários.
Uma boa parte dos recursos para financiar os déficits americanos irá derivar
então do próprio choque de petróleo, o qual gera pressão no sentido de
minimizar a depreciação do dólar via aumento da procura pela moeda americana.
Se o primeiro
ciclo financeiro da corrente década levou um ano e meio para mudar e se a sua
inflexão, em janeiro de 2001, ocorreu numa situação favorável aos EUA (dólar forte, superávit
orçamentário), hoje, diante do dólar fraco e dos déficits gêmeos colossais,
teria certamente que esperar muito mais tempo para ver o ciclo se inverter. Esse
prazo pode diminuir se o preço do barril se sustentar a níveis elevados, na
barra dos 100 dólares e se a taxa de juros e os cortes nos gastos públicos
estadunidenses forem adequados.
3. A relação
petróleo/dólar. O preço do petróleo e as necessidades de liquidez em dólar
Explica-se
usualmente a relação positiva entre o preço do petróleo e o dólar pelo
comportamento de poupança dos paises exportadores de petróleo. Uma elevação do
preço do barril aumenta o superávit externo desses países e os excedentes são
aplicados em ativos em dólar. Assim, o encarecimento do petróleo aumenta a
demanda mundial por ativos em dólar, cujo resultado mais do que compensa a
degradação causada pelo encarecimento do petróleo sobre os saldos externos da
economia americana: o dólar se aprecia. Mas, hoje, esse mecanismo tende a não
funcionar plenamente.
As importações
mundiais de petróleo são de cerca de 50 milhões de barris por dia. Um
incremento do preço do barril de 20 dólares, por exemplo, (como foi o caso em
2004 quando o petróleo passou de 40 para 60 dólares) provoca uma necessidade de
liquidez adicional em dólar de 1 bilhão por dia. Esse capital adicional de giro
pode dobrar quando são considerados os derivados de petróleo, que são também
faturados em dólar. É um volume considerável de liquidez que se adquire
essencialmente junto aos paises superavitários: os asiáticos e os árabes que
aplicam suas poupanças no mercado financeiro americano, financiando os déficits
gêmeos dos Estados Unidos.[7] A elevação do preço do
petróleo que obriga todos os paises importadores a comprar mais dólares para
pagar o petróleo, o reembolso das dívidas por parte dos paises árabes e a
reciclagem dos excedentes via o financiamento dos déficits americanos formam um
triplo motivo para a limitação da depreciação do dólar.
A cotação do
petróleo aumentou firmemente desde meados de 1999 até 2008, paralelamente à
queda do dólar e à elevação das taxas de juro no mercado americano. Como
explicação, evocavam-se a contração dos estoques americanos de petróleo, a demanda
elevada, a falta de investimentos no refino, a instabilidade geopolítica no
Oriente Médio, etc. Um grande número de analistas argumentavam, ainda, que os
déficits nas transações correntes dos EUA
eram a verdadeira razão do encarecimento do petróleo.
De 1973 a
1979, período contido entre duas crises energéticas, o preço do petróleo foi
multiplicado por 2.1 vezes e o dólar havia se desvalorizado 18%.[8] De 2002 a 2007, o preço do
petróleo foi multiplicado por 2.6 vezes, ao tempo em que o dólar sofreu uma
desvalorização de cerca de 36%, passando de 1.10 para 0.71 euro no final. Essa
comparação mostra como se atenuou o papel do encarecimento do petróleo na
minimização da desvalorização do dólar, sobretudo a partir de 2005. De fato,
nos últimos três anos a relação entre a alta do petróleo e a cotação do dólar
se torna nitidamente negativa: enquanto o preço do petróleo se vê em alta
constante, passando do nível de 60 a 100 dólares o barril, entre 2005 e 2007, a
cotação do dólar sofre quedas importantes, fechando os anos de 2005, 2006 e
2007 com as respectivas cotações de 0.85 euro, 0.76 euro e 0.69 euro.
É verdade que
o dólar desvalorizado diminui o valor real do barril de petróleo em outras
moedas. No entanto, a valorização do petróleo, no período em pauta, foi bem
maior do que a depreciação do dólar, o que resultou em um considerável aumento
da fatura energética dos importadores líquidos de petróleo. Quando se compara a
cotação média anual do câmbio euro/dólar com o preço do barril de petróleo dos
anos de 2002 e de 2007, respectivamente um barril a 25 dólares por um euro a
0.94 dólar e um barril a 75 dólares por um euro a 1.36 dólar, pode-se constatar
que em 2000 o barril custava 26.5 euros e, em 2007, estava em 55.5 euros: o
dobro. Uma verdadeira transferência de poder aquisitivo se operou a favor dos
paises exportadores de petróleo.
Gráfico iii
Cotações dólar e petróleo
Fontes: Elaboração
própria a partir de dados da opep (2009)
e do bce (2009).
O
encarecimento do petróleo ainda pôde conter a queda da moeda americana,
principalmente através da compra de títulos americanos por parte dos países
exportadores de petróleo. Sem esses fluxos, cuja principal origem são os paises
árabes, o mecanismo não funcionaria e os americanos não teriam nenhum interesse
no petróleo caro. Todavia, se os excedentes de petróleo sustentam uma dívida
externa americana crescente, em oposição, a permanência dos déficits nas
transações correntes dos EUA,
junto ao encarecimento do petróleo, suscita necessariamente uma contração da
economia mundial e acentua a insustentabilidade desse equilíbrio a termo,
provocando uma situação grave para a economia mundial e particularmente para a
associação EUA-mundo árabe. A
respeito dessa relação, é bom lembrar o que ocorreu em 1986 com o contrachoque
petroleiro, quando o preço do barril despencou para 10 dólares. Nessa época, os
países árabes exportadores de petróleo estavam profunda e duplamente
prejudicados, pois, para agravar mais a sua situação, a queda do preço do
petróleo foi acompanhada por uma desvalorização em torno de 100% do dólar. De
fato, o dólar estava muito alto, com a taxa equivalente a 2 euros por 1 dólar,
e sua aterrissagem foi concertada, em setembro de 1986, na reunião do G5 (EUA, Japão, Alemanha, Inglaterra e
França) no Hotel Plaza em Nova York. A injeção decidida de dólares nos mercados
monetários foi suficiente para reduzir o valor do dólar pela metade,
dispensando os americanos da necessidade de reciclar os excedentes dos países
árabes e de pressionar para alta o preço do petróleo. Os déficits
estadunidenses na época não ameaçavam a moeda americana, pois eram amplamente
financiados por fundos europeus e japoneses. A economia mundial estava em
recessão e o desemprego na Europa estava registrando as taxas mais altas da
história. A retomada do crescimento se tornou crucial para sair da crise e a
queda do preço da energia, um requisito imposto pela conjuntura, o que explica
o acordo do Hotel Plaza.
O forte
aumento do preço do petróleo nos anos 2000-2008 não provocou contração no ritmo
do crescimento da economia mundial. A situação foi, portanto, diferente daquela
que prevaleceu durante as crises energéticas dos anos de 1970 e 1980, quando a
economia mundial era inflacionária. Por 80 dólares o barril, o calculo dava
para a China, por exemplo, um custo energético adicional de 61,55 bilhões de
dólares em 2005, equivalente a 3.5% do pib
chinês daquele ano. Isso teria como conseqüência um crowding out de
1.75%, segundo a simulação do Observatório Francês de Conjuntura Econômica (ofce, 2006). Um ponto do pib em custo adicional na conta petróleo
teria um impacto de -½ ponto no crescimento econômico, o que teria reduzido o
crescimento da China para 6.25% em 2006, taxa inferior à taxa efetiva de 10.7%.
A diferença pode encontrar explicação nas vantagens comparativas da China e nas
novas estratégias comerciais e de abastecimento aplicadas por este país. Nessas
estratégias tenta-se evitar ao máximo a utilização do dólar nas transações
comerciais, mesmo que as cotações se referem ainda nominalmente à moeda
americana.
Hoje, a
situação está diferente, devido, também, à mudança nos fluxos internacionais de
capitais, a qual reordena o sistema internacional de endividamento, onde os
Estados Unidos são devedores e os paises asiáticos credores. Uma situação de
endividamento profundo que mina necessariamente o status hegemônico da moeda americana.
4. Enfraquecimento
do dólar, Bretton Woods II e equilíbrio do terror financeiro
São os países
asiáticos e, numa certa medida, os países árabes exportadores de petróleo que
financiam os déficits externos americanos. As intervenções cambiais dos bancos
centrais asiáticos para sustentar o dólar deram mais impulso às importações
americanas, particularmente de produtos asiáticos de baixo valor unitário.
Freqüentemente, os asiáticos condicionam suas concessões de empréstimos à
conquista de mercados nos países financiados, o que eleva suas exportações para
os países que se endividam, particularmente os EUA.
Para os países árabes, embora as informações sobre seus investimentos diretos
não estejam claras, pode-se considerar que sua situação seja semelhante a que
associa a Ásia aos EUA. Quanto aos
europeus, acanhados, relutam em comprar ativos americanos. Estão duplamente
incomodados pela supervalorização do euro e pelo encarecimento desproporcional
do petróleo. O bce não sabe como
agir para corrigir o câmbio sem gerar mais inflação. Fica, então, na
expectativa de uma solução externa, confinado na sua função de garantir a
estabilidade dos preços e, com o encarecimento das matérias primas, sustenta o
juro para contrariar a inflação importada, agindo de forma pró-cíclica.
Uma
interpretação ao aparecimento desses desequilíbrios e de uma possível mudança
no sistema monetário internacional foi dada pelos economistas do Deutsche Bank
(Folkerts et al., 2007). Segundo essa equipe, influente na literatura
sobre as finanças internacionais, o sistema mundial atual pode ser visto como
um novo Bretton Woods. Um conjunto de países do Leste Asiático, incluindo a
China, aplicam um regime cambial fixo ou quase fixo em relação ao dólar,
formando um sistema monetário padrão-dólar informal. Como no regime original de
Bretton Woods, os EUA representam
o centro que se beneficia do privilégio de emitir a principal
moeda-de-reserva internacional, que os países da periferia desejam
adquirir a fim de acelerar o seu desenvolvimento. Essa tese se inspira, é
claro, da época do pós-guerra, quando as economias da Europa e do Japão estavam
em ruínas e se recuperavam dolorosamente da segunda grande guerra; suas moedas
estavam desvalorizadas e inconversíveis. Somente o valor do dólar estava
garantido pela conversibilidade em ouro, por uma taxa fixa. Algumas semelhanças
podem ser observadas entre os dois esquemas monetários, é verdade, mas as
diferenças são grandes e suas conseqüências diferentes. No sistema original de
Bretton Woods, contrariamente ao sistema atual, a economia americana estava
amplamente superavitária. No pós-guerra eram os americanos que exportavam
capital e hoje são importadores líquidos.
Segundo Larry Summers, ministro das finanças no governo Clinton, a Ásia
e os EUA estão condenados a se
sustentarem mutuamente, qualificando essa situação de equilíbrio do terror
financeiro. Os asiáticos estariam pressionados a prosseguir na compra dos
títulos americanos, apesar do risco cambial crescente dos engajamentos em
dólar. Uma atitude contrária pode levar a um crash financeiro desastroso
para o mundo e do qual os países credores da Ásia sairiam como principais
vítimas (Summers, 2007).
Os EUA acusam a China de manter
artificialmente sua moeda desvalorizada para expandir as exportações. Os
europeus, depois da forte valorização do euro em outubro de 2007, tentam,
também, pressionar a China para elevar o valor do yuan. Todos são unânimes a
afirmar que o yuan não reflete os fundamentos econômicos da China e pedem uma
maior flexibilidade no regime cambial desse país. É verdade que o boom
econômico chinês devia elevar o valor do yuan nos mercados cambiais, mas a
fragilidade do sistema financeiro da China, junto com o receio de reduzir as
exportações e a taxa do crescimento econômico, faz com que as autoridades
chinesas mantenham uma política cambial cautelosa, o que acentua os déficits
comerciais da Europa e, particularmente, dos EUA
junto a China.
Em 2006, a economia americana registrou um déficit comercial recorde de
764 bilhões de dólares, dos quais 232 bilhões (mais de ¼) foram registrados
junto a China e 88 bilhões junto ao Japão, um montante que deve suscitar também
a idéia da sub-valorização do iene.[9] Na realidade,
não há provas de que a apreciação do yuan, de modo a adaptar sua cotação aos
fundamentos chineses, contenha as exportações da China e reduza de forma
satisfatória os desequilíbrios internacionais. Primeiro, porque a vantagem da
China no comércio mundial deriva essencialmente do custo baixo da sua mão de
obra, com um salário médio por hora trabalhada de 0.50 dólar, contra 16 dólares
nos EUA. Segundo, porque os
desequilíbrios americanos têm como foco principal o excesso de gastos públicos,
particularmente os gastos militares.[10]
Terceiro, um outro fator de instabilidade americana é a debilidade da poupança
doméstica, como prova a crise imobiliária atual. Portanto, um yuan
desvalorizado é apenas um dos fatores que alimentam a dinâmica dos
desequilíbrios americanos e mundiais.[11]
O embaraço da
hegemonia monetária americana está precisamente na contração do papel do dólar
nos mercados internacionais, principalmente enquanto meio de pagamentos e
reserva de valor, comprometendo a relação positiva entre o preço das commodities
e o dólar. Dois fatores interligados explicam a tendência à redução da
importância do dólar: o primeiro é que, como já foi dito, muitos países optam
por efetuar suas transações comerciais internacionais com suas próprias moedas,
com o euro ou com a troca direta de mercadorias e serviços por outras
mercadorias e outros serviços. Conseqüentemente, afrouxa-se a necessidade de
mobilizar dólares para o faturamento internacional, contraindo assim os
investimentos em ativos americanos.
O segundo fator está no surgimento da China no mercado monetário
mundial, um país que se tornou, a partir de marco de 2006, o maior detentor de
reservas internacionais. Praticando um regime cambial quase fixo em relação ao
dólar, a China está induzida a se opor à apreciação da moeda americana. Uma
diversificação de suas reservas cambiais que pudesse provocar a desvalorização
da moeda americana garantiria a sua competitividade no mercado mundial. Outros
países podem seguir o exemplo da China de se desengajar em dólar.[12] Pode-se entender assim o fim da relação positiva entre
a alta das commodities e o comportamento do dólar.
5. A crescente
importância da China no mercado mundial e as novas práticas de comércio
internacional
Há mais de 20
anos a economia chinesa cresce a uma taxa média anual de 9 a 10%, em contraste
com o fraco desempenho da economia ocidental, sobretudo a européia. Os
americanos, que cresceram durante os últimos 20 anos a uma taxa que flutuou
entre 3 e 4%, gastaram mais do que produziram. O sucesso da China ficaria sem
explicação se a abertura de sua economia não contasse com uma mão de obra
pletórica, qualificada e barata. Graças ao surto econômico, o Império-do-Meio
atrai cada ano volumes consideráveis de investimento direto. A moeda chinesa
está ancorada a uma cesta de moedas constituída essencialmente pelo dólar
americano e a depreciação deste favorece a competitividade da China. Com seus
excedentes comerciais extraordinários, a China acumula grandes reservas
cambiais, que chegam à cerca de 1.5 trilhões de dólares em meados de 2007.
Além da inflação, o problema que pode ameaçar a prosperidade chinesa é a
escassez na oferta mundial de matérias primas, sobretudo da energia, sendo a
China o segundo maior importador de commodities após os EUA. A oferta nacional de energia nesse
país, realizada à base do carvão, cobre apenas a metade da demanda e sua
participação no mercado doméstico está em queda, razão pela qual as importações
estão crescendo significativamente. No entanto, a China mostra praticar uma estratégia
de abastecimento energético seguro e diversificado, junto a países diferentes
como Arábia Saudita, Irã, Indonésia, Rússia e paises da África e da Ásia
central. A penetração chinesa na África e no Golfo pérsico fica cada vez mais
precisa. O Sudão e, particularmente, o Irã, dois países que os EUA ameaçam invadir se tornaram
parceiros privilegiados da China.[13] Em
troca de petróleo com Irã, Nigéria, Angola e Sudão, a China exporta bens e
tecnologias.[14] As
empresas petroleiras chinesas, todas estatais, entram em concorrência direta
com as majors americanas, atuando até mesmo em áreas petroleiras de
predomínio americano, como na Arábia Saudita onde negociam a formação de
estoques de petróleo saudita na China.
Na África, a
presença chinesa é mais sentida. As importações da China do continente africano
cresceram, em 2006, a uma taxa de 25%, contra 15% em 1986. Os chineses procedem
com extrema atenção na sua política de garantir o abastecimento energético sem
ferir os interesses americanos e europeus nas regiões onde estabelecem
contratos. A estratégia chinesa nesses contratos, que são de longo prazo,
consiste em adquirir petróleo investindo nos setores energéticos e na
infraestrutura dos países fornecedores. Essa estratégia se traduz por uma
atividade sustentada para as empresas chinesas de construção e engenharia
civil, as quais arrebatam as licitações públicas no mundo, em virtude dos
custos mais baixos que se devem basicamente à mão de obra qualificada e barata
deslocada da China. Freqüentemente, os chineses financiam as obras dos seus
parceiros africanos e asiáticos sem cobrar juros,[15]
tendo o reembolso garantido através do fornecimento em petróleo e outras commodities.
Quando são
considerados os prejuízos causados por um dólar instável, a venda de matérias primas
em outras moedas, ou em troca de mercadorias e serviços, se revela mais
benéfica do que quando se recorre à intermediação do dólar. É o que desvenda a
política de parceria estratégica pregada pela China. Outros países, em
número crescente, tendem também a praticar políticas comerciais que dispensam o
dólar como meio de pagamentos, substituindo a moeda americana por acordos
bilaterais.
Os chineses
preferem praticar escambo com seus parceiros africanos e orientais e restringem
o uso do dólar em seus contratos para evitar as oscilações cambiais. Países
como Rússia, Venezuela, Irã, Bolívia e Sudão (hostis aos EUA) e outros como a Noruega trocam
parte de seus produtos energéticos, ou por outra moeda que não seja o dólar, ou
por outras mercadorias ou serviços, mesmo que as cotações e os valores
continuem a se referir à moeda americana. Embora continue a ocupar um papel
central como unidade de conta, a moeda americana deixa de ser utilizada como
meio de pagamentos e reserva de valor nessas novas relações comerciais, as
quais tendem a reduzir a procura por dólares, contrair o volume dos excedentes
em dólar que regressam aos EUA e
privar este país de uma parte do seu direito de senhoriagem sobre o
mundo.
Considerações
finais
O dólar está
desvalorizado e o preço das commodities no mercado mundial se sustenta.
A conta energética continua alta, e as exportações aos EUA, devido à recessão, se contraem, inibindo o crescimento
da economia mundial. Desde então, o financiamento de parte dos déficits
americanos através do encarecimento do petróleo e das commodities em
geral tende a se inviabilizar. Diante desses desafios, o governo americano
entende que a situação de desequilíbrio de suas contas ameaça a sua hegemonia
monetária. Uma reação ortodoxa das autoridades dos EUA consistiria numa política fiscal e monetária
contracionista. Porém, o governo estadunidense tenta debelar a recessão através
de uma política fiscal expansionista.
A aplicação
dessa política implica necessariamente cortes nas despesas militares. Isso explicaria
a mudança de política internacional dos EUA.
De fato, o governo estadunidense está mostrando uma vontade de renovar suas
políticas pragmáticas, apontando para a aplicação das recomendações do
relatório Hamilton-Baker de janeiro de 2007. Ele já mostra uma mudança de
atitude no dossiê do Oriente Médio, entendendo que Israel não poderá constituir
um apoio sustentável no longo prazo nos novos contornos que se desenham nos
cenários geopolíticos e geoeconômicos mundiais. As tropas americanas estão saindo
do Iraque; no Afeganistão, aumenta a participação de outros países ocidentais;
na Coréia do Norte, a negociação política substitui a invectiva e gera
resultados importantes em termo de redução das instalações nucleares. Todas
essas mudanças na política internacional dos EUA
apontam para a gestação de uma nova configuração mundial, cuja consolidação
dependerá da inteligência estratégica para administrar os fracassos americanos
dos últimos anos, pois se trata bem de fracassos frente aos sobressaltos de um
mundo em transição.
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Recibido: 25 de enero de 2008.
Reenviado: 21 de octubre de 2010.
Aceptado: 13 de diciembre de 2010.
Bouzid
Izerrougene. Possui
graduação em Economia-Université de Paris XIII (1984), mestrado em Economia,
Universite de Paris XIII (1987), doutorado em Economia, Université de Paris
XIII (1992) e pós-doutorado pela Universidade Paris-Dauphine. Atualmente é
professor associado da Universidade Federal da Bahia. Tem experiência na área
de Economia, com ênfase em Teoria do Comércio Internacional, Economia Monetária
e Economia da Cultura e do Conhecimento. Publicou artigos científicos em
periódicos especializados, livros e capítulos de livros. Realizou comunicações
científicas em eventos nacionais e internacionais. É membro do Conselho Editorial
das Revistas Análise & Dados, Revista de Economia do Nordeste e Nexos
Econômicos. É membro de comissões científicas dos Encontros da Associação
Nacional de Pós-Graduação em Economia
(anpec) e da Economia Baiana. Últimas publicações: A Instabilidade das
Finanças Internacionais e a Vulnerabilidade das Economias Periféricas, ufba, Salvador (2000); “Les Principaux
Défis de l´Integration Economique de Pays inégalement développés”, em Isabelle
Hannequart, (org.), Union Europeenne e Mercosud. Entre Concurrence e
Solidarité, L’Harmattan, Paris, pp. 301-321 (2008); co-autoria, “A Lógica
da acumulação capitalista na economia informacional”, Liinc em Revista,
6, São Paulo, pp. 41-65,
<http://revista.ibict.br/liinc/index.php/liinc/article/view/339> (2010).
Henrique Tomé da Costa-Mata. Tem graduação em
Engenharia Florestal
pela Universidade Federal Rural de Pernambuco, Brasil (1990), Licenciatura em
Ciências Agrícolas pela Universidade Federal Rural de Pernambuco, Brasil
(1990), com estágio supervisionado na área de administração rural. Possui
Mestrado em Ciências Florestal (Economia Florestal) pela Universidade Federal
de Viçosa, Brasil (1993), com dissertação no campo de socioeconomia de demanda
de energia residencial em áreas rurais de produção florestal destinadas à
indústria de papel e celulose. Tem Doutorado em Economia Aplicada pela
Universidade Federal de Viçosa, Brasil (2001), com tese sobre teoria econômica
e meio ambiente (macroeconomia ambiental). Atualmente é professor adjunto na
Universidade Federal da Bahia, Departamento de Teoria Econômica. Tem
experiência no campo de gestão de Recursos Naturais, Meio Ambiente e
Desenvolvimento. No campo do ensino, ministra disciplinas de teoria econômica
em geral, microeconomia, macroeconomia e economia dos recursos naturais e meio
ambiente, com enfoque na pesquisa sobre políticas de desenvolvimento e meio
ambiente. Últimas Publicações: en co-autoria, “Caracterização e dinâmica dos
mecanismos de incentivo ao desenvolvimento do Pólo Digital de Pernambuco”, Revista
Desenbahia, 7, Salvador, pp. 163-188 (2010); “A economia política do
desenvolvimento em África: Reflexões com base em agregados econômicos de países
lusófonos e francófonos”, em Lívio Andrade Wanderley, Osmar Sepúlveda Gonçalves
(org.), Reflexões dos economistas baianos, 2007-2008, Saraiva, Salvador,
pp. 107-124 (2008); “Interpretação da Lei Kaldor-Verdoorn para Análise Setorial
do pib, Valor Adicionado,
Produtividade e Emprego na Economia Brasileira” em Fernando Rios do Nascimento
(org.), 40 Anos do Curso de Economia: Memória, 2, ed. revista e
ampliada, Editora da uesc, Ilhéus,
pp. 423-450 (2006).
[1]1 As catástrofes naturais (Katarina e Rita) e a guerra no Iraque acentuaram o déficit público americano em 2006.
[2] Os dados sobre as taxas de juro americanas são do Federal Reserve (statistical release). Os dados sobre preço de petróleo são da opep (Monthly Oil Market Report). Os dados sobre as taxas de juro européias são do Banco Central da Europa (bce). Os dados sobre as taxas cambiais são dos sites de Internet: www.yahii.com.br/euro.html e www.easy-forex.com/en/.
[3] O dólar sendo a moeda essencial no mercado internacional de commodities em geral.
[4] O pretexto das armas químicas também não vale, pois os americanos só invadiram o Iraque depois que tiveram a certeza, através dos inspetores da onu que fizeram este trabalho, de que não havia armas de destruição maciça. Não teriam corrido tamanho risco.
[5] Não foi por acaso que o governo dos Estados Unidos apresentou uma
atitude moderada face ao regime de Pyongyang na Coréia do Norte, o qual rompeu
os acordos sobre a energia atômica em dezembro de 2002, enquanto que, face ao
Iraque, o mesmo governo de Bush se mostrou altamente intransigente.
[6] Esse crescimento dos juros coincide com a consolidação dos déficits gêmeos americanos. Em 2004, o déficit público americano atinge 422 bilhões de dólares, e o comercial cerca de 640 bilhões.
[7] No caso dos paises árabes, endividados, uma parte do excedente serve a quitar dívidas e, conseqüentemente, não reintegra o circuito econômico mundial, isto é, a moeda adicional associada ao petróleo é destruída.
[8] Dados calculados em relação ao marco alemão (World Perspective, 2008).
[9] Em relação a Europa, os EUA conseguiram, com a valorização do euro, reduzir o seu déficit para 116.6 bilhões de dólares, no ano de 2007.
[10] A manutenção de 737 bases militares pelo mundo exige orçamentos colossais, sem contar as guerras realizadas a partir de 2001.
[11] Ademais, o governo chinês aplica uma política cambial que lhe convém, da mesma forma que as autoridades americanas manipulam, e sempre manipularam o dólar conforme os seus interesses nacionais.
[12] O banco central da Suécia (Riksbank) procede, desde abril de 2006, a uma diversificação de suas reservas a favor do euro e contra o dólar, quando a proporção da moeda européia aumentou de 37 para 50% e aquela da moeda americana caiu de 37 a 20%.
[13] A China é o primeiro cliente do Sudão e do Irã. Os chineses se declararam contra o embargo americano contra o Sudão, sustentando o regime de Cartum na questão do Darfur. São também contrários a qualquer intervenção americana no Irã.
[14] Particularmente armamentos no caso do Irã.
[15] A China perdoou a dívida de 31 paises africanos.