Reformas Constitucionais e autonomia municipal no Brasil
Angela Moulin S.
Penalva Santos*
Liana Portilho Mattos**
Abstract
The
municipality in Brazil became a federative entity after the Federal
Constitution of 1988, within the context of redemocratisation of the power
structures, which included the extension of the citizens’ rights. In this way,
the municipal governments became important actors in these policies, having an
effect on the relationships between central and local governments, particularly
in matters of tax distribution. The increase in financial autonomy of the
municipalities diminished the contributions appropriated by the central
government, which faced increasing financial obligations due to the extension
of the social rights that were introduced by the current Constitution. These
facts led the central government to introduce amendments to the Constitution which included an increased taxation not shared
with the state and local governments, as well as a transfer of
responsibilities, and a greater financial participation, in the public
policies.
Keywords: municipality,
federalism, decentralisation.
Resumo
O Município
tornou-se ente federativo após a Constituição Federal de 1988, num contexto de
redemocratização das estruturas de poder no Brasil, o que incluiu a ampliação
dos direitos dos cidadãos. Assim, os governos municipais tornaram-se
importantes atores destas políticas, com impactos nas relações entre o governo
central e os locais, especialmente no que tange à distribuição da arrecadação
tributária. O aumento da autonomia financeira dos Municípios diminuiu a parcela
das receitas apropriadas pelo governo central, que enfrentava crescentes
obrigações financeiras diante da ampliação dos direitos sociais introduzidos
pela atual Constituição. Essa evidência o levou a reagir com emendas à
Constituição que levaram à ampliação da carga tributária não-partilhada com os
governos estaduais e municipais, bem como com a transferência de
responsabilidades – e maior participação no financiamento – de políticas
públicas.
Palavras clave: município, federalismo, descentralização.
*
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Correo-e: angelapenalva@terra.com.br.
** Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais. Correo-e: lianaportilho@ terra.com.br.
Introdução
A partir da
Constituição de 1988, o Município brasileiro, até então simples parte
integrante do Estado-Membro, foi alçado à condição de ente federado, passando a
ser personagem autônomo do denominado Pacto Federativo. Em razão disso, é certo
que a realidade do Município sofreu grandes modificações, decorrentes de seu
inédito papel no novo padrão de organização federativa que a Constituição
implantou. Essas modificações configuraram-se, principalmente, nas mudanças
ocorridas na distribuição dos recursos tributários e também no processo de
descentralização das políticas públicas, que conferiu ao Município novas
responsabilidades político-administrativas.
A despeito da
concepção formulada pelo constituinte originário, decorridos quase 15 anos, é
possível verificar que o modelo de Federação pensado em 1988 não corresponde ao
que se desenha na Carta atual, reformada mais de 40 vezes desde então.
Este trabalho
tem por objetivo analisar o impacto das sucessivas reformas à Constituição de
1988 na autonomia dos Municípios. Na primeira parte, serão apresentadas algumas
das especificidades da autonomia do ente municipal e do pacto federativo no
Brasil. Na segunda, serão analisadas algumas das principais emendas
constitucionais, para identificar os seus possíveis reflexos na autonomia dos
Municípios brasileiros. Na terceira e última, serão feitas considerações finais
sobre os pontos principais do trabalho.
A hipótese
estudada refere-se à improcedência das críticas ao alegado “excessivo
descentralismo financeiro” da Constituição Federal em face da expansão dos
direitos dos cidadãos brasileiros, demandando forte aporte de recursos
públicos. Ao completar 15 anos de vigência, a “Constituição Cidadã” voltou a
ser acusada de gerar ingovernabilidade, seja porque não previa recursos
necessários para dar efetividade à cidadania ampliada, seja porque alçava o
Município à condição de ente autônomo da Federação, introduzindo maior rigidez
na negociação do pacto federativo.
Este estudo está
baseado no levantamento das Emendas à Constituição e na identificação das que
afetam a autonomia municipal pactuada em 1988. Já foram aprovadas 40 emendas
constitucionais,[1] sendo apenas a última no
Governo Lula (2003). As demais são, em sua quase totalidade, do período
referente aos dois mandatos do presidente Cardoso (1995-1998 e 1998-2002). As
exceções referem-se às primeiras Emendas que entraram em vigor ainda no governo
Itamar Franco (1993-94), quando Cardoso era ministro da Fazenda. Assim, a
reforma constitucional realizada no Brasil está profundamente identificada com
as iniciativas de Cardoso.
1. Constituição,
Município e pacto federativo
Embora seja
correto afirmar, à luz da Constituição, que no Brasil existe um pacto
federativo formado por União, Estados, Distrito Federal e Municípios, na
verdade tal afirmação deve ser vista com crítica e reserva. É que no Brasil
nunca se estabeleceu um pacto, mas apenas um simples arranjo federativo, feito
às avessas dos modelos pensados e consagrados na experiência de outros países.
Nos Estados Unidos e na Suíça, por exemplo, regiões autônomas decidiram
juntar-se para formar a Federação, abrindo mão de sua soberania e celebrando um
pacto de verdade que nasceu de baixo para cima. Aqui, ocorreu uma inversão – ou
invenção – que em nada correspondia ao modelo federativo tradicional: os
Estados foram criados e “ganharam” uma autonomia que não tinham, ao passo que
as instâncias municipais, que já existiam, foram deixadas de fora da Federação,
em patamar inferior ao dos Estados e sem autonomia.
Duas idéias são
centrais para compreender o significado, o propósito e o sucesso na formação de
uma Federação: a de autonomia e a de participação (Bonavides, 1997: 181 et
seq.).
Em relação à
primeira, a Constituição de 1988 assegurou ao Município quatro capacidades: a) de auto-organização, por meio de uma
Lei Orgânica elaborada e promulgada por sua Câmara de Vereadores, sem
interferência de qualquer espécie do Legislativo Estadual ou Federal; b) de autogoverno, exercida pelo
prefeito e vereadores eleitos pelo voto direto e secreto (desapareceu, de vez,
a figura do prefeito nomeado); c) de autolegislação sobre assuntos de
interesse local (não mais sobre “assuntos de peculiar interesse”) e sobre
outros, de forma suplementar e concorrente; e d) de auto-administração, para arrecadar
os tributos de sua competência, aplicar suas receitas e prestar serviços
públicos à comunidade local.
Não há como
negar, então, que o sistema federativo adotado pelo Brasil desde a Proclamação
da República evoluiu significativamente, ficando o Município equiparado ao
Estado-Membro, dotado, como este, de autonomia – política, administrativa e
financeira – e de competências próprias.
Entretanto, em
relação à idéia central da participação, a situação do ente municipal é bem
outra. Primeiro, é necessário esclarecer que tal participação é tomada no
sentido de valoração da vontade política de todos os entes federados na
construção da soberania da Federação, mas também no sentido de cooperação e
ampliação da autonomia entre tais entes, autonomia obtida mediante uma
repartição constitucional de competências que leve em conta a mesma vontade de
todos os entes na sua formação.[2]
Na verdade, a
repartição de competências na Constituição de 1988, embora tenha sofrido uma
grande influência de associações e entidades que defendiam a causa
municipalista, não foi determinada levando em conta a participação política dos
Municípios, mesmo porque eles inexistiam formalmente para a Federação até
então.[3]
Talvez aqui resida uma das causas que têm levado, tradicionalmente, a União ao
centralismo nas tomadas de decisão que afetam todos os entes, especialmente as
que surtem efeitos sobre a chamada autonomia financeira dos Municípios. Para
ilustrar, o projeto de reforma tributária atualmente em tramitação no Congresso
Nacional[4] é
exemplo da pouca ou da quase nula participação dos Municípios nas discussões
anteriores ao envio do projeto e, ao mesmo tempo, acerca do centralismo antes
mencionado, da crescente participação dos Estados nessas discussões.
Nesse sentido,
quanto à autonomia financeira dos Municípios no contexto do pacto federativo, é
possível afirmar que o novo modelo de Federação incorporou, em termos, as
idéias que recomendaram, por um lado, a transferência de encargos da União para
os Estados e os Municípios e, por outro, a desconcentração dos recursos
tributários, com alterações nos critérios de sua repartição. Tal modelo deixou
claro que o Município, no desempenho de suas atribuições exclusivas, não
deveria nem poderia subordinar-se ao Estado-Membro ou à União, e que as leis
municipais deveriam prevalecer sobre as estaduais e as federais, e até mesmo
sobre a Constituição do Estado, em caso de conflito.
Diante de tudo
isso, parece correto dizer que o Município brasileiro, com a Constituição de
1988, adquiriu – teoricamente – o direito de exercer a condição de ente
federado. Na prática, contudo, o exercício pleno desse direito não lhe foi
garantido. O constituinte de 1988 parece ter imaginado que haveria uma adesão
automática dos governantes aos seus propósitos descentralizadores, que
entretanto não ocorreu.
Dificultando a
viabilidade do processo de autonomia financeira municipal, esta passou a ser
atacada por reduzir as receitas do governo central: a participação da União na
receita disponível no país diminuiu de 61.1%, em 1989, para 56.4%, em 1996, o
que não poderia ter deixado de acontecer, posto que a participação dos Estados
e Municípios nessa mesma receita e nesse mesmo período cresceu,
respectivamente, de 25% para 27% e de 13.9% para 16.7% (Kugelmas, 2001: 36). Após
uma reação do governo central, houve uma recomposição das receitas disponíveis
da União, que passaram a 57.78%, ficando os Municípios com 16.62%, em 2002 (bndes, 2003). É importante destacar que
a participação dos Municípios somente foi mantida nesse patamar devido às
transferências do Sistema Único de Saúde (sus),
consideradas transferências voluntárias, “dinheiro carimbado”, distintas das de
natureza constitucional, sobre as quais o Município tem inteira autonomia em
sua alocação.
Diante desse
fato, agravado porque verificado num contexto de instabilidade política, de
ameaça de hiperinflação e de uma aguda crise da dívida externa, iniciou-se uma
verdadeira batalha entre a União, os Estados-Membros e os Municípios, em que a
busca do equilíbrio fiscal fora a justificativa para o embate que então se
travou e que continua sendo travado, interferindo, séria e negativamente, na
autonomia dos entes subnacionais.
O Governo
Federal jamais se conformou com os avanços obtidos, em 1988, pelos
Estados-Membros e Municípios e não conseguiu conviver com o novo modelo de
Federação. Para a União, avanços institucionais dos Estados e Municípios –
tidos como “ganhos” deles – foram vistos como “perdas” inaceitáveis.
Analisando a
conjuntura política e constitucional a partir de 1988, parece irrefutável a
idéia de que a União tratou de combater os “ganhos” dos entes subnacionais para
tentar eliminar as “perdas”, tomando como alvo preferencial dessa disputa
inglória o sistema tributário brasileiro.
Do lado da
receita, o Governo Federal passou a compensar as suas “perdas” recorrendo à
criação de tributos e à elevação das alíquotas dos já existentes, seguindo uma
lógica inteligente e perversa de maximização de resultados: as escolhas feitas
com essa intenção passaram a recair prioritariamente em tributos não
partilhados com os Estados e os Municípios, como as denominadas contribuições
sociais, entre as quais a Contribuição para o Financiamento da Seguridade
Social (Cofins) e a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (cpmf).
Do lado da
despesa, o Governo Federal deu início a uma política destinada à limitação das
funções do Estado, estimulando o processo de descentralização, entendido como
transferência de responsabilidades do governo central às esferas subnacionais.
A União passou a se concentrar nas políticas macroeconômicas e transferiu as
políticas sociais para Estados e Municípios, especialmente a execução dos
serviços que são obrigação constitucional do poder público e direito dos
cidadãos.
Ao eleger a
descentralização das políticas públicas uma prioridade, a União mostrava
sintonia com o espírito dos constituintes de 1988. No entanto, ao promover a
expansão da agenda dos governos locais, inclusive mediante o recurso de
vinculação das receitas municipais, o governo central ampliou as necessidades
financeiras dos Municípios, mas conteve a elevação das transferências
intergovernamentais ao recompor suas receitas com recursos não-partilháveis com
Estados e Municípios.
Foram e vêm
sendo muitas as pressões do Executivo Federal sobre o Congresso, envolvendo
barganhas, para que os interesses da União prevaleçam. Nesse contexto, um dos
mecanismos utilizados de maneira bastante eficaz para que a União conseguisse
recompor parte do poder perdido em 1988 foi a prática do “remendo” à
Constituição de 1988, totalmente desfigurada, diversas vezes, por emendas
impostas pela sanha fiscal, centralizadora e autoritária da União,[5]
que põe em xeque o arranjo federativo pactuado em 1988.
A Constituição,
na verdade, previa uma revisão após cinco anos de vigência. Em 1993, contudo, a
situação política do país, sob o governo de Itamar Franco, eleito
vice-presidente nas eleições de 1989, estava muito fragilizada devido ao
processo de impedimento do presidente Collor, ocorrido em setembro do ano anterior.
Ademais, o Congresso também enfrentava uma crise de credibilidade deflagrada
com o “escândalo do orçamento”.[6]
Nessas condições, malogrou a tentativa de revisão constitucional. Somente após
a posse do presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1995, seria iniciada a
reforma constitucional por meio do recurso às emendas constitucionais (Mello,
2002).
2. Constituição e
reformas
2.1. Situando o
problema
Nesses 15 anos de
vigência da “Constituição Cidadã”,[7] 40
emendas constitucionais alteraram-na significativamente. Tamanha sanha
mudancista deve ser considerada no contexto histórico em que foi elaborada a
Carta Magna.
A quebra de
ordem democrática pelo regime militar (1964-1985) foi acompanhada da introdução
de uma Constituição que concentrava o poder em torno da União, inclusive
mediante centralização da arrecadação tributária. Apesar disso, foi mantido, e
até ampliado, o sistema de transferência de receitas para os governos estaduais
e municipais. Entretanto, tais recursos estavam, em grande parte, vinculados a
programas definidos pelo planejamento do governo central. Tratava-se de
“dinheiro carimbado” que não poderia financiar projetos eventualmente mais
necessários segundo os critérios das esferas subnacionais de governo. Os
Municípios eram inteiramente dependentes da tutela dos Estados, mas os
governadores, não obstante serem entes autônomos da Federação, viajavam
regularmente a Brasília para buscar recursos, num ritual que a imprensa
denominou de “política de pires na mão”.
A crise
econômica deflagrada a partir de fins dos anos 1970 reduziria a capacidade
financeira da União de cooptar os governos estaduais. Essa perda de controle
ficaria ainda mais acentuada após a retomada da autonomia política dos
governadores, que voltaram a ser eleitos por voto popular e direto em 1982.
Três anos depois, foi a vez dos Municípios capitais dos Estados elegerem
diretamente seus prefeitos. A legitimidade do voto popular, associada à perda
de capacidade financeira da União, resultaram num movimento pela
redemocratização das estruturas de poder que culminaria com a elevação dos
Municípios “às galas da Constituição” em 1988.[8]
2.2. Emendas
Constitucionais: o efeito sobre a autonomia dos Municípios
Antes mesmo de a
Constituição ter completado seu quinto aniversário, a Emenda
3, de 18 de março de
1993, já alterara praticamente toda a Seção v
do Capítulo i do seu Título vi, que trata dos impostos dos
Municípios, extinguindo, por exemplo, o que incidia sobre as vendas a varejo de
combustíveis líquidos e gasosos, exceto óleo diesel – de fácil cobrança, que
muito Município brasileiro nem chegara a instituir, ainda –, e revogando o
dispositivo que permitia a progressividade, no tempo, do imposto sobre a
propriedade predial e territorial urbana, para assegurar o cumprimento da função
social da propriedade.[9]
Logo depois, a Emenda
Constitucional de Revisão 1,
de 1º de março de 1994, instituiu – com o confessado objetivo de sanear as
finanças da Fazenda Pública Federal e de estabilizar a Economia – o Fundo
Social de Emergência (fse), que
limitou drasticamente as transferências vinculadas da União para os Estados e
Municípios. De acordo com Kugelmas (2001: 3), a aprovação do fse, que restringe o volume das
transferências vinculadas a Estados e Municípios, foi conseguida
a duras penas e
explica-se pelo temor da explosão inflacionária e por seu caráter transitório
(o texto referia-se apenas aos anos de 1994 e 1995). Considerada vital para dar
credibilidade fiscal ao plano de estabilização [Plano Real], esta medida foi a
primeira reversão na trajetória descentralizadora que se iniciara nos últimos
anos do regime militar.
Esse Fundo, que
seria transitório, foi depois prorrogado, renomeado e reforçado, não sendo
razoável acreditar que as transferências por ele limitadas voltem algum dia a
ser como eram, quando o constituinte de 88 as instituiu.
Essa mesma
Emenda Constitucional de Revisão 1 revogou, expressamente, o §4º do art. 2º da
Emenda Constitucional 3, de 1993, em que se destinava ao custeio de programas
de habitação popular vinte por cento do imposto sobre movimentação ou
transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira que a
União ficara autorizada a instituir, imposto esse que por certo interessava, e
muito, aos Municípios.
Nesse mesmo
sentido, a Emenda Constitucional 10, de 4 de março de 1996,
“re-instituiu” (prorrogou) o Fundo Social de Emergência, com a denominação de
Fundo de Estabilização Fiscal, fazendo desaparecer, assim, a emergência, mas
mantendo e ampliando as limitações ou os contingenciamentos das transferências
vinculadas da União aos Estados e Municípios, em prejuízo destes. Outra vez, a
União viu compensadas suas “perdas”, com a redução dos “ganhos” dos demais
entes da Federação.
A Emenda
Constitucional 12, de
15 de agosto de 1996, permitiu à União estabelecer contribuição provisória
sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de
natureza financeira (cpmf), cuja
alíquota não excederia a vinte e cinco centésimos por cento (podendo ser
reduzida pelo Executivo), seria destinada integralmente ao Fundo Nacional de
Saúde, para financiamento das ações e serviços de saúde, e não poderia ser
cobrada por prazo superior a dois anos. A cpmf,
hoje se sabe, foi (é), na verdade, um imposto federal não-transferível,
disfarçado de contribuição social, que de “provisória” só tem (teve) o nome e
cuja destinação (“salvar a saúde”) nunca foi respeitada, pois os recursos de
sua arrecadação serviram, sempre, para cobrir despesas financeiras no orçamento
da União. Além disso, com a cpmf,
legalizou-se, no Brasil, a bitributação, uma vez que ela incide sobre o
pagamento, pela via bancária, de qualquer tributo municipal, estadual ou
federal, o que se torna mais sério na medida em que o Município e o
Estado-Membro acabam, de certa forma, tributados pela União (quando se paga um
imposto municipal ou estadual, o dinheiro pago deixa de ser do contribuinte e
passa a ser do ente federado, logo, a cpmf
cobrada no momento do pagamento é, na verdade, um adicional cobrado pela União
sobre uma renda do Município ou dos Estados).
Outra emenda que
merece ser analisada é a Emenda Constitucional 14, de 12 de setembro de 1996, que
estabeleceu novas e maiores obrigações do Município para com o ensino e
autorizou a União a criar o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), de natureza contábil (de
fato, criado, posteriormente, por lei). Trata-se do programa de maior
capilaridade na Federação brasileira, somente comparável ao do Sistema Único da
Saúde, seja pela abrangência nacional, seja pela importância dos recursos
mobilizados.
O Fundef
beneficiou, mais uma vez, a União, que não respeitou os critérios estabelecidos
em lei para a distribuição proporcional dos seus recursos e para sua
fiscalização e controle, bem como a fórmula de cálculo do valor mínimo nacional
por aluno. Em nome desse Fundo, a União transferiu competências para os
Estados-Membros, e estes, da mesma forma, “municipalizaram”, à força, suas
escolas, ficando o Município com escolas de mais e recursos de menos, sem saber
se estavam, ou não – e com certeza estavam –, sendo atacados em sua autonomia
financeira, uma vez que a lógica do Fundo é altamente complexa.
Vejamos, de
forma mais detalhada, o problema: a Constituição de 1988 havia estipulado, no
art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que o poder
público, nos dez anos seguintes, aplicaria pelo menos cinqüenta por cento dos
recursos a que se referia o art. 212 da Carta para eliminar o analfabetismo e
universalizar o ensino fundamental.
O mencionado
art. 212, por seu turno, afiança que “a União aplicará, anualmente, nunca menos
de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, vinte e cinco por
cento da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de
transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino”.
Os recursos
provenientes das transferências de que trata o referido dispositivo, no que
tange ao Município, estão previstos nos arts. 158, ii, e 159, i,
“a”.
No entanto, essa
situação jurídica perdurou apenas no período entre a promulgação da
Constituição e o advento da Emenda Constitucional 14, de 12 de setembro de
1996, que modificou os arts. 34, 208, 211 e 212 do texto da Carta e em
particular o art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, prorrogando
por mais dez anos, a contar da promulgação da Emenda, o prazo inicialmente
previsto naquele artigo (que expiraria em 1998) e alterando e ampliando, ainda,
o percentual e a destinação dos recursos a que se refere o art. 212 (antes,
deveriam ser aplicados cinqüenta por cento, no mínimo, daqueles recursos, para
eliminar o analfabetismo e universalizar o ensino fundamental; depois, essa
aplicação passou a ser de obrigatórios sessenta por cento, visando à manutenção
e ao desenvolvimento do ensino fundamental, com o objetivo de assegurar a
universalização de seu atendimento e a remuneração condigna do magistério).
A par disso –
como já se viu –, a referida Emenda autorizou a União a criar o Fundef,
estipulando que ele seria constituído por, pelo menos, quinze por cento dos
recursos a que se referem os arts. 155, ii;
158, iv; 159, i, “a” e “b”, e ii, da Constituição, determinando que os valores relativos
ao referido Fundo seriam distribuídos entre cada Estado e seus Municípios
proporcionalmente ao número de alunos matriculados nas respectivas redes de
ensino fundamental e que a União Federal complementaria os recursos dos Fundos
em cada Estado e no Distrito Federal, quando seu valor por aluno não alcançasse
o mínimo definido nacionalmente.
Por fim, a
Emenda estipulou que a lei ordinária disporia acerca da organização dos Fundos,
da distribuição proporcional dos seus recursos, de sua fiscalização e controle,
bem como da forma de cálculo do valor mínimo nacional por aluno. Pela Lei
9.424, de 24 de dezembro de 1996, foi então implantado, de fato, o Fundef, na
qual se estabelecia que a partir de 1º de janeiro de 1998 o referido Fundo
seria criado, automaticamente, no âmbito de cada Estado.
A mencionada Lei
9.424/96, ao dispor sobre a forma de cálculo do valor mínimo nacional por
aluno, determinou que tal valor seria fixado por ato do presidente da República
e nunca seria inferior à razão entre a previsão da receita total para o Fundo e
o número total de matrículas do ensino fundamental no ano anterior, acrescido do
número total estimado de novas matrículas.
Foi dessa forma
que surgiu o Fundef, que obrigou o Município a contribuir com seus parcos
recursos, para uma conta única, de natureza contábil, pelos dez anos
subseqüentes, da qual aqueles recursos seriam recambiados para seus legítimos
donos, após uma distribuição proporcional ao número de alunos nas respectivas
redes de ensino fundamental.
Ocorre que a
Emenda Constitucional 14/96 afrontou, entre outros dispositivos da
Constituição, o do art. 60, §4º, i,
que diz não poder ser objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
abolir a forma federativa de Estado.
A Emenda
simplesmente ignorou a condição de ente federado do Município e a sua
conseqüente autonomia financeira, que advém das receitas determinadas no texto
constitucional, entre as quais as provenientes da arrecadação dos tributos de
sua competência e as decorrentes da repartição dos impostos federais e
estaduais.
É fora de
dúvida, portanto, que a Emenda Constitucional 14/96 feriu a autonomia do Município,
posto que fez evaporar, antes mesmo de chegar em seus cofres, parte dos
recursos que, pela Constituição, deveriam ser-lhe integralmente destinados.
Não bastasse
tudo isso, a Constituição foi novamente emendada para embaraçar mais ainda a
autonomia do Município.
Em 12 de
setembro de 1996, pela Emenda 15, estabeleceu-se que Lei Complementar
Federal determinaria o período no qual a lei estadual procederia à criação, à
incorporação, à fusão e ao desmembramento de Municípios, que dependeriam de
consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos,
após a realização de Estudos de Viabilidade Econômica apresentados e publicados
na forma da lei (federal, por certo). Observe-se que a Constituição havia
deixado a União de fora dessa questão, não prevendo Lei Complementar Federal
nem o Estudo de Viabilidade Econômica.
Houve, de fato
uma proliferação de Municípios, mas o remédio para esse mal não é, com certeza,
a intromissão da União. A criação de muitos novos Municípios foi resultado dos
procedimentos previstos pela Constituição de 1988, facilitando a emancipação de
distritos, que se tornaram Municípios: era necessário ouvir em plebiscito
apenas a população da área a ser emancipada.
A maior parte
dos novos Municípios, assim como a maior parte dos Municípios já existentes,
tem sua receita municipal muito dependente das receitas de transferências, em
particular do Fundo de Participação dos Municípios (fpm). Este é constituído de 22.5% do somatório dos impostos
sobre produtos industrializados e de renda. O critério de distribuição do fpm[10]
é diretamente proporcional à população municipal e inversamente proporcional à
sua renda per capita.
Trata-se de uma
fonte de receita municipal com viés redistributivista que favorece os
Municípios de pequeno porte localizados em regiões menos dinâmicas. Nessas
condições, e sem que tenha havido aumento da arrecadação dos impostos que
compõem o fpm, o aumento no número
de Municípios produz uma perda de receita nos já instalados. Os novos
Municípios recém-emancipados, por outro lado, garantem uma receita que antes da
emancipação era alocada sistematicamente na sede do Município ao qual o
distrito pertencia.
Outra crítica à
criação dos aproximadamente 1,000 Municípios nos últimos 15 anos refere-se ao
aumento dos gastos relacionados à instalação nesses novos Municípios dos
poderes executivo e legislativo e do quadro de pessoal administrativo. Essa
seria uma forma menos eficiente de alocar recursos públicos do que seria a
realização de investimentos. Cabe lembrar, todavia, que, embora ineficiente,
essa foi uma maneira de redistribuir recursos para localidades não beneficiadas
pelos investimentos públicos municipais antes da emancipação dos distritos.
No mesmo passo,
rumo à reconcentração dos poderes distribuídos em 1988, a Emenda
Constitucional 17,
de 22 de novembro de
1997, estendeu o prazo de validade do Fundo de Estabilização Fiscal; a Emenda
21, de 18 de março de
1999, prorrogou a cpmf; e a Emenda
25, de 14 de
fevereiro de 2000, alterou os limites de despesas do Município com o seu Poder
Legislativo. Todas essas Emendas, de um modo ou de outro, afetam a autonomia
dos Municípios brasileiros.
Em seguida, veio
a Emenda 26,
de 14 de fevereiro de 2000, que tornou a moradia direito social, incluindo-a no
rol dos direitos sociais fundamentais previstos no art. 6º da Carta. Tal Emenda
não representou, por si, uma ingerência na autonomia municipal, na medida em
que já figurava no texto de 1988 a competência comum da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios em “promover programas de construção de
moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico” (art.
23, ix).
No entanto,
assim que o direito à moradia passa a ter status de direito fundamental, a sua
prestação passa a ser exigível pelo cidadão de imediato, por força do disposto
no art. 5º, §1º, da Constituição: “as normas definidoras de direitos e
garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Portanto, em tese, o Município
tem de desempenhar a competência estabelecida no art. 23, ix, num grau muito mais elevado de
necessidade e responsabilidade.[11]
Posteriormente,
outras emendas constitucionais “anti-autonomia municipal” foram promulgadas. A Emenda
27, de 21 de março de
2000, desvinculou “de órgão, fundo ou despesa, no período de 2000 a 2003, vinte
por cento da arrecadação de impostos e contribuições sociais da União, já
instituídos ou que vierem a ser criados no referido período, seus adicionais e
respectivos acréscimos legais”, sem reduzir “a base de cálculo das
transferências a Estados, Distrito Federal e Municípios”. A chamada
Desvinculação das Receitas da União (dru)
veio confirmar uma prática iniciada em 1994, com a Emenda de Revisão 1, quando
a criação do já mencionado Fundo Social de Emergência proporcionava alguma
flexibilidade ao orçamento da União. Essa estratégia, no entanto, foi
implementada em detrimento da autonomia municipal – e também estadual –
pactuada pelo constituinte de 1988.
De significativa
importância em muitos sentidos foi a entrada em vigor da Emenda
29, de 13 de setembro
de 2000, que alterou diversos artigos da Constituição, impondo restrições e
condições para a aplicação de recursos para financiamento das ações e serviços
públicos de saúde, por parte dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Essa Emenda criou uma vinculação das receitas dos governos municipais com a
assistência à saúde, na proporção de 15% de suas receitas correntes. Tal
vinculação certamente fere a autonomia municipal em relação à destinação dada a
parte da sua arrecadação tributária própria e das receitas de transferências
constitucionais, ambas receitas que a Constituição Federal assegura serem do
Município, ao qual cabe administrá-las segundo o interesse local.
Em contrapartida
a tal ingerência na autonomia municipal, a União introduziu nessa mesma Emenda
29 um artigo que tornou constitucional a progressividade na cobrança do Imposto
Predial e Territorial Urbano (iptu),
imposto de competência municipal. Apesar de já previsto na Constituição, o iptu progressivo vinha sendo considerado
bitributação e, portanto, inconstitucional, o que inviabilizava a sua cobrança
pelos Municípios. Por isso, o dispositivo que possibilitou aos Municípios impor
a progressividade na cobrança do iptu
foi apresentado como uma compensação aos Municípios, que passaram a ter seu
orçamento comprometido com a criada vinculação aos serviços de saúde.
No mesmo ano de
2000, a Constituição voltou a ser emendada: a Emenda 31, de 14 de dezembro de 2000,
instituiu, no âmbito do Poder Executivo Federal, para vigorar até o ano de 2010,
o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, destinando-lhe recursos que, mais
uma vez, reduziram as transferências da União para os Estados e Municípios.
Ademais, essas duas esferas subnacionais de governo “devem instituir fundos de
combate à pobreza”, sendo que os Municípios poderão criar adicional de meio
ponto percentual na alíquota do Imposto sobre Serviços (iss), imposto de competência municipal, cuja administração é
de responsabilidade exclusiva do Município.
A Emenda
33, de 11/12/2001,
alterou o sistema tributário nacional ao criar a Contribuição de Intervenção no
Domínio Econômico (cide),
incidente sobre combustíveis. Como a cpmf,
anteriormente mencionada, é um tributo que beneficia tão-somente a União, uma
vez que, por ser contribuição, não é partilhado com os demais entes
governamentais.
Outra emenda
relevante à análise aqui empreendida é a Emenda 37, de 12 de junho de 2002, que, entre
outras disposições, prorrogou o prazo de cobrança da cpmf. São dois os pontos a serem destacados. O primeiro
refere-se ao fato de que a cpmf,
cujos recursos deveriam financiar apenas a Saúde, passou a financiar também a
Previdência e o Fundo de Combate à Pobreza. O aspecto central no que tange à
autonomia financeira dos Municípios é que tal diminuição dos recursos da saúde
poderá refletir-se em novas pressões sobre as finanças municipais, dado que as
prefeituras são as executoras da assistência à saúde.
O segundo ponto
refere-se à previsão de lei complementar para legislar sobre o iss, no intuito de coibir a guerra
fiscal entre os Municípios. Apesar de ser um imposto de competência municipal,
a Lei Complementar 116, de 31/7/2003 (federal, naturalmente), anula
praticamente todas as normas anteriores de arrecadação e tributação do iss, a maior fonte de arrecadação tributária
própria dos Municípios. Houve, é verdade, uma ampliação significativa dos
serviços a serem tributados; no entanto, a alíquota máxima permaneceu fixada em
5%, sendo que a mínima já estava estabelecida em 2% desde a entrada em vigor da
Emenda 37.
Não obstante a legitimidade dos objetivos perseguidos, trata-se de uma afronta
à autonomia municipal instituída na Constituição Federal.
Por fim, cabe
citar a Emenda 39,
de 19/12/2002, que alterou o sistema tributário nacional ao criar a
contribuição para o custeio da iluminação pública nos Municípios e Distrito
Federal. Essa foi a primeira Emenda Constitucional que atendeu apenas ao
interesse dos Municípios, ampliando sua competência tributária, o que lhes
propiciará maior autonomia financeira.
A estagnação
econômica compromete a capacidade de extração fiscal num contexto em que ocorre
significativa elevação da necessidade de refinanciamento público, como sucedeu
durante o governo Cardoso, aumentando a vulnerabilidade externa do país e,
assim, dificultando a possibilidade de crescimento econômico. O Produto Interno
Bruto (pib) per
capita cresceu apenas
4.73% durante o primeiro quadriênio da gestão Cardoso (1994-1998), diminuindo
ainda mais no segundo quadriênio (1998-2002), quando foi de apenas 2.71%.[12]
Apesar desse desempenho ruim, a carga tributária global, que era de 29.8% do pib, em 1994, elevou-se para 35.6%, em
2002. E, apesar dessa ampliação, as receitas partilháveis com os âmbitos
subnacionais de governo pouco ou nada se elevaram, suscitando uma fragilidade
na estrutura federativa pactuada em 1988. Não causa surpresa, assim, que os
Municípios tenham sido atendidos, finalmente, ainda que apenas nos últimos dias
do governo Cardoso, pela entrada em vigor de um novo tributo de competência
municipal.
Cabe considerar,
entretanto, que é muito diferente o impacto causado por medidas que
possibilitam o aumento da arrecadação própria municipal, como é o caso do iptu progressivo, do causado por medidas
que elevam as receitas de transferências. Estas últimas, para cerca de 85% dos
Municípios brasileiros, com população inferior a 30 mil habitantes, são as que
têm maior impacto nas suas receitas municipais. Medidas que aumentam o
potencial de arrecadação própria provocam maior impacto apenas entre os
Municípios com base econômica mais significativa. É o caso dos 223 Municípios
brasileiros cuja população supera os 100 mil habitantes, mas, em particular,
dos maiores, capitais estaduais ou com população superior a 300 mil habitantes.[13]
Nessas condições, à grande maioria desses Municípios brasileiros interessam
medidas que resultem em aumento das transferências, mesmo que sejam
transferências voluntárias, como são os convênios, além do sus e do Fundef. Aos Municípios de maior
porte, importa ampliar a sua competência tributária. Nunca é demais lembrar que
ao conjunto dos Municípios a medida de maior impacto nas suas receitas e,
portanto, na sua autonomia financeira, seria a retomada do crescimento, pois
isso significaria elevação da quota-parte do Impuesto a la Circulación de Mercaderías
y Servicios (icms), a principal
fonte de receitas dos Municípios.
Todo esse
cenário que aqui se tentou delinear, de verdadeira “queda de braço” entre os
entes federativos – cujos atores principais têm sido o Município, de um lado,
como “perdedor”, e a União, de outro, como recorrente “ganhadora” –, teve um
epílogo retumbante logo no início do governo Lula, em 2003, com o início dos
debates sobre a nova proposta de Reforma Tributária.
A proposta foi
aprovada no Congresso Nacional, mas, ao chegar no Senado, foi modificada, tendo
reduzido seu escopo. Estabeleceram-se três etapas de discussão. A primeira foi
aprovada e instituída pela Emenda Constitucional n. 42, de 19/12/2003, e seguiu
a orientação do governo Cardoso: os principais pontos referem-se à cpmf, que se transforma em contribuição
em caráter permanente, à dru, que
também se torna permanente; mas, diferentemente do que vigia ao tempo de
Cardoso, a cide deve ser
partilhada com os Estados e Municípios. A dificuldade de atender governadores
de uma Federação tão economicamente desequilibrada como a nossa postergou para
uma outra etapa da reforma a unificação da legislação do icms, o principal imposto no sistema
tributário brasileiro.
No que tange aos
Municípios especificamente, os ganhos referem-se à participação na arrecadação
da cide, mas está aberta a
possibilidade de sair da Constituição o critério de partilha das receitas de
transferência do icms nas etapas
seguintes da reforma. Hoje, os 25% da arrecadação do icms são distribuídos, numa proporção de 80%, de acordo com
o que é arrecadado em cada Município, o que beneficia os Municípios de melhor
base econômica. Uma alteração nesse critério poderá beneficiar os Municípios
economicamente menos dinâmicos, atendendo ao interesse da maioria deles, contudo
afetará as receitas municipais dos maiores, justamente os que sofrem maiores
pressões demográficas. As transferências do icms,
ao contrário das do fpm, não têm
um viés redistributivista, mas isso poderá ser alterado na reforma tributária
em discussão. Cabe frisar que a quota-parte do icms
representa a maior fonte de receitas municipais considerando o conjunto dos
Municípios. Trata-se, portanto, de uma possível alteração de grande monta nas
receitas e, portanto, na autonomia financeira dos Municípios.
Considerações finais
À guisa de
conclusão, pode-se afirmar que não há como o Município exercer sua autonomia –
ou exercer, com plenitude, a sua condição de ente da Federação –, se a sua
autonomia financeira não for uma conquista permanente.
Diante da já mencionada
“sanha fiscal” da União, o Município não pode utilizar, como bem entender e
achar conveniente, o que o constituinte disse que lhe pertencia de direito: os
recursos financeiros provenientes das transferências constitucionais, que vêm
sendo cada vez mais contingenciadas.
A par disso, o
Município vem assumindo despesas que deveriam ser arcadas pela União e pelos
próprios Estados-Membros. Um estudo do Instituto Brasileiro de Administração
Municipal (ibam) (Bremaeker, 2003)
aponta para valores correspondentes, no ano de 1998, a 4.52%, das receitas
municipais comprometidas com aquelas despesas, que incluem, entre outras, a
manutenção do Fórum e os serviços da Justiça Eleitoral e dos cartórios.
Com isso,
enfraquece-se o Município e se desestrutura o equilíbrio de forças que deveria
existir entre os entes da Federação.
O
enfraquecimento dos Municípios, entretanto, é percebido com preocupação pelo
mesmo presidente Cardoso, cujo governo patrocinou substancial reforma do Estado
que resultou numa estrutura federativa tão distante da imaginada pelo
constituinte de 1988.[14]
Ao completarem-se os 15 anos da promulgação da Constituição, Cardoso declarou
ser favorável à realização de uma “miniconstituinte” (Folha
de S. Paulo, 2003),
isto é, uma revisão constitucional de parte da Carta Magna, o que incluiria
apenas as questões relativas à Previdência, ao Sistema Tributário e ao Pacto
Federativo. Reconhecia, assim, que sob seu governo não conseguira estabelecer
bases sustentáveis para a estrutura federativa em vigor. No entanto, sob seu
governo, essa fora alterada, quase sempre em favor da União, indicando que o
governo fora movido pelas circunstâncias que o levaram a ajustar suas finanças
em detrimento do ente mais frágil da Federação, o Município.
O governo que o
sucedeu, do presidente Lula (2002-2006), elegeu-se com um discurso de oposição,
comprometendo-se com as teses progressistas, as quais incluíam o fortalecimento
dos governos municipais. O êxito de alguns desses governos, sob a administração
do pt, o partido de Lula,
sustentava o compromisso do novo governo com a descentralização das políticas
públicas. A criação do Ministério das Cidades, uma novidade na estrutura
administrativa, sinalizava na mesma direção. No entanto, o governo Lula só
tomou iniciativas de propor alterações na Constituição Federal naqueles pontos
já indicados por Cardoso: nas questões previdenciária e tributária. A primeira
foi aprovada e instituída pela Emenda Constitucional 41, de 19/12/2003,
enquanto a segunda, que interfere de modo mais direto no Pacto Federativo, não
conseguiu as condições políticas necessárias para ser aprovada na íntegra,
segundo o projeto apresentado pelo governo, sendo dividida em etapas, das quais
aprovou-se apenas a primeira. Isso, entretanto, está menos relacionado ao fato
de os Municípios terem sido pouco ouvidos e mais à falta de acordo entre os
governadores.
Não se
desconhece a enorme diversidade econômica, social, política e demográfica entre
os 5,561 Municípios brasileiros. Essa diversidade dificulta a participação dos
Municípios nas discussões sobre reforma tributária, já que são muito distintos
os interesses dos de pequeno porte em relação aos maiores, por exemplo. No
entanto, a participação dos Municípios nas reformas institucionais seria
viabilizada mediante as organizações representativas dos Municípios de pequeno
porte – 90% deles têm população inferior a 50 mil habitantes – e das capitais
estaduais, já organizados e representados, respectivamente, pela Confederação
Nacional dos Municípios (cnm) e
pela Associação Brasileira das Prefeituras das Capitais. Os Municípios de médio
porte acabam por estar mal representados pela cnm,
mas, pelo seu pequeno número, podem ser representados por deputados, embora
isso não deva substituir uma organização como as das duas classes de cidades
mencionadas.
Assim, apesar de
um aparato institucional que sustenta a posição de ente da Federação aos
Municípios e dos avanços no governo Lula a respeito da importância dos governos
municipais, o Município permanece um ente federativo de segunda classe.
Bibliografia
bndes (Área
de Planejamento - Departamento Econômico) (2003), Boletim
Informe-se, n. 54,
abril (Carga Tributária Global. Estimativa para 2002).
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Bremaeker,
François (2003), Despesas municipais com as
funções de competência da União e dos Estados em 2001, ibam,
Série Estudos Especiais, n. 49, maio, Rio de Janeiro.
Folha de S. Paulo (2003), jornal de circulação no Brasil, 5 out.
Kugelmas,
Eduardo (2001), “A evolução recente do regime federativo no Brasil”, in Wilhelm
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na Alemanha e no Brasil,
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Lira, Ricardo
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Brasil: instituições políticas e processo decisório, Revan, Rio de Janeiro; Ministério da
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Angela Moulin (2003a), “Reforma do Estado, descentralização e autonomia
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ano 4, v. 2, São Paulo.
Vedana, Celso
(2002), Federalismo: Autonomia Tributária Formal dos
Municípios, Habitus,
Florianópolis.
Recibido:
4 de julio de 2005.
Aceptado:
5 de septiembre de 2005.
Angela Moulin S. Penalva Santos. Economista (Universidad del Estado
del Río de Janeiro, uerj), maestra
en ingeniería de la producción (coppe/ufrj)
y doctora en estructuras ambientales urbanas (fau/usp).
Profesora adjunta de la uerj, en
la Facultad de Ciencias Económicas y en el Programa de Posgrado en Derecho
desde 1981 (asignaturas: Planeación Urbana, Estado y Políticas Públicas,
Economía Política, Economía Fluminense y Formación Económica de Brasil). Investigadora
del Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico; líneas de investigación: federalismo
fiscal, descentralización, ciudades medianas y economía fluminense. Profesora
visitante del Programa de Maestría en Desarrollo Regional y Gestión de Ciudades
de la Universidad Cândido Mendes (ucam)
desde 2001. Autora de Economia, Espaço e Sociedade no
Rio de Janeiro, fgv, Río de Janeiro, 2003; de dos
capítulos (en coautoría) del libro Cidades Médias Brasileira, ipea,
Río de Janeiro, 2001 (“Fluxos migratórios nas cidades médias e regiões
metropolitanas”, pp. 171-212, y “Federalismo no Brasil: análise da
descentralização financeira da perspectiva das cidades médias”, pp. 295-336);
así como de varios artículos en revistas, como “Descentralização e autonomia
financeira municipal: a perspectiva das cidades médias”, Indicadores
Econômicos, fee/rs, 32 (3): 101-126, y, en
coautoría, el “bota-abaixo revisitado: o Executivo municipal e as reformas
urbanas no Rio de Janeiro (1903-2003)”, Revista Rio
de Janeiro,
mayo-agosto 2003, núm. 10: 11-34.
Liana
Portilho Mattos
es abogada (ufmg), especialista en
análisis urbano (ufmg) y maestra
en derecho de la ciudad (uerj);
procuradora del estado de Minas Gerais y profesora de la Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (puc/mg),
donde coordina los cursos de actualización y especialización a distancia en el
área de derecho. También es profesora de cursos de posgrado lato
sensu
(asignaturas: Derecho Urbanístico, Estatuto de la Ciudad y Legislación
Urbanística y Ambiental) en el Centro de Actualización en Derecho, cad/Gama Filho, en el Instituto de
Educación Continuada (iec/puc
Minas) y en el puc Minas Virtual.
Es miembro del International Research Group on Law and Urban Space (irglus), grupo de trabajo afiliado al
Research Committee on Sociology of Law of the International Sociological
Association (rcsl) desde 1997, y
del Instituto Brasileño de Derecho Urbanístico (ibdu)
desde 2001. Es autora del libro A
efetividade da função social da propriedade urbana à luz do estatuto da cidade, Temas & Idéias, Río
de Janeiro, 2003; organizadora y coautora de Estatuto
da Cidade Comentado,
Mandamentos, Belo Horizonte, 2002, y de varios artículos y capítulos en
revistas y libros, como “A simplificação do direito e o acesso à justiça” en la
Revista de Direito da Associação dos Procuradores do
Novo Estado do Rio de Janeiro, en Gustavo Binenbojn (coord.) Direitos
Fundamentais,
vol. xii, Lumen Juris-aperj (Associação dos Procuradores do
Novo Estado do Rio de Janeiro), 2003, Río de Janeiro, pp. 333-343; “Viver,
morar, transitar: o homem e a cidade”, en Cármen Lúcia Antunes Rocha (coord.), O
direito à vida digna,
Fórum, Belo Horizonte, 2004, pp. 289-316; “Concessão de uso especial para fins
de moradia: um caso concreto”, en Betania Alfonsin y Edésio Fernandes (orgs.), Direito
à moradia e segurança da posse no estatuto da cidade: diretrizes,
instrumentos e processos de gestão, Fórum, Belo Horizonte, 2004, pp. 179-201.
[1] Entraram
em vigor, após o término deste artigo, as Emendas 41 (Reforma Previdenciária) e
42 (Reforma Tributária), ambas em 19/12/2003.
[2] De
acordo com Bonavides (1997: 181), “[…] Tanto a participação como a autonomia
existem em função das regras constitucionais supremas, que permitem ver na
Federação, como viu Tocqueville no século xix,
duas sociedades distintas, encaixadas uma na outra, a saber, o Estado federal e
os Estados federados harmonicamente superpostos e conexos”.
[3] É
importante destacar que a repartição de competências na Constituição de 1988
tem outras características negativas, como afirma Eduardo Kugelmas (2001: 37):
“Uma das características do modelo federativo brasileiro é o grande número de
competências conjuntas dos três níveis, sem uma definição clara das respectivas
esferas”.
[4] Esse
projeto foi dividido em três etapas, a primeira das quais foi aprovada como
Emenda Constitucional 42, em 19/12/2003.
[5] Expressão
de Joel de Menezes Niebuhr no prefácio a Vedana (2002).
[6] Escândalo
provocado pela descoberta de um esquema que associava parlamentares e técnicos
do Congresso Nacional para manipular o Orçamento Federal.
[7] A
Constituição Federal foi chamada de “Constituição Cidadã” pelo então presidente
do Congresso Nacional, deputado Ulysses Guimarães, no ato de sua promulgação,
em 5 de outubro de 1988, por ter ampliado significativamente os direitos
sociais dos cidadãos brasileiros.
[8] Segundo
expressão de Ricardo Lira (1996), ao comentar a nova condição dos Municípios
como entes autônomos da Federação.
[9] Isso
seria revertido mais tarde, com a Emenda Constitucional 29.
[10] Segundo
a Lei Complementar 63/1989, o fpm
será assim distribuído entre os Municípios: 10% entre as capitais estaduais,
3.6% entre os Municípios com mais de 156,216 habitantes e os 86.4% restantes
entre os demais Municípios, aí incluídos aqueles com população superior a
156,216 habitantes.
[11] Cf.
Emenda de Revisão 1.
[12] Evolução
do pib per capita,
a preços constantes de 2002, segundo a base de dados do Ipea/Ministério do
Planejamento: Ipeadata.
[13] Existe
uma relação positiva entre tamanho da população municipal e arrecadação
tributária própria dos Municípios. Essa relação está apontada em Penalva Santos
(2003a).
[14] Além
das Emendas à Constituição Federal, o governo Cardoso promulgou duas leis muito
importantes para os Municípios: a Lei de Responsabilidade Fiscal e o Estatuto
da Cidade. A primeira estabelece normas de controle dos entes governamentais,
visando sobretudo aos governos municipais, mais difíceis de serem controlados,
dada a enorme capilaridade da malha urbana brasileira, constituída de 5,561 Municípios.
A segunda, o Estatuto da Cidade, é a lei que regulamenta os arts. 182 e 183 da
Constituição Federal, permitindo que os Municípios utilizem os novos
instrumentos jurídicos de controle do uso do solo criados em 1988, dentre os
quais a cobrança do iptu
progressivo e a outorga onerosa dos direitos de construir.