Estado, descentralização e sustentabilidade dos governos
locais no Brasil
Ailton Mota de Carvalho*
Abstract
In a
historical moment in which political decentralization and greater importance of
local government are subject of widespread interest, the lack of capacity of
most Brazilian municipalities and cities to assume greater responsabilities is
evident. This situation is easy to verify not only through the analysis of
population, income levels and services sector data, but also because of the
lack of minimum management and administrative skills by most municipal
administrations in Brazil. The Brazilian case is explained by a historic
process of municipalities creation which has been
deformed in terms of principles and form by a shadow industry or cities
creation. Therefore, the artificial creation of municipalities and cities
jeopardizes the possibilities of successful government decentralization in
Brazil.
Keywords: decentralization, local government, municipalities.
Resumen
En un momento
en que se habla tanto acerca de la descentralización y la valoración de los
gobiernos locales, se torna evidente la completa incapacidad de los municipios
y de las ciudades brasileñas para asumir las crecientes responsabilidades que
les están siendo confiadas. Esta incapacidad es fácilmente constatada a partir
de datos objetivos de población, renta y prestación de servicios, pero también
por la falta de capacidad de gestión y de preparación político-administrativa
para el ejercicio de las mínimas funciones municipales. Dicha realidad
brasileña está relacionada con el proceso histórico de municipalización,
inicialmente distorsionado en sus principios y sus formas: una verdadera
industria de creación de municipios y ciudades inviables que pone en peligro
todo el proceso de descentralización y municipalización del Brasil.
Palabras clave:
descentralización, gobiernos locales, municipalización.
*
Universidade Estadual do Norte Fluminense. Correo-e: amota@uenf.br
1. Introdução
Questionar, do
ponto de vista teórico, o processo de reforma do Estado na América Latina é uma
tarefa praticamente impossível, tal a força com que este modelo se implantou
entre nós, a partir dos anos oitenta. Dentre os sagrados princípios dos
programas de reforma, destaca-se a necessidade da descentralização da
administração pública, com o repasse de deveres e obrigações dos níveis mais
altos de governo, para os níveis mais baixos (no caso brasileiro para Estados e
Municípios). Teoricamente, o que ampara o princípio da descentralização são os
argumentos de que:
·
Facilita
a oferta diferenciada de bens e serviços;
·
Melhora
a identificação das necessidades;
·
Melhora
a capacidade para executar e controlar;
·
Evita
demandas excessivas;
·
Diminuí
custos e favorece a flexibilidade;
·
Favorece
a democratização;
·
Favorece
a transparência.
Este é o lado bom
da descentralização e contra ele fica difícil argumentar, razão pela qual ele
serve de estímulo para as emancipações municipais. Porém, para que a
descentralização seja real, é preciso que o governo local, ou seja, o
município, reuna as condições financeiras, administrativas e políticas para
assumir as novas responsabilidades que lhes estão sendo confiadas.
Nos últimos dez anos,
particularmente após o restabelecimento do regime democrático em 1985 e
promulgação da nova Constituição Federal de 1988, o Brasil vem passando por um
intenso processo de divisão política administrativa, materializada na
fragmentação de sua malha municipal. Esta pulverização de novos municípios, de
acordo com a estrutura político-administrativa brasileira, implica na criação
direta do mesmo número de cidades, pois a passagem de um distrito para a
condição de município, significa que o núcleo sede seja elevado à condição de
cidade.[1]
Desta maneira, quando se cria um
município inviável, significa também a criação de uma cidade inviável, ou não
sustentável, pois não há como separar a parte do todo. Pelo contrário, todos os
defeitos de origem são exacerbados e concentrados nas cidades, sobretudo se
considerarmos a realidade de que a maior parte da população brasileira vive nos
centros urbanos, sedes de municípios. Por isso consideramos que o processo de
emancipação municipal no Brasil é uma verdadeira indústria de criação de
unidades inviáveis e insustentáveis, o que pode ser facilmente comprovado,
verificando-se a situação de penúria econômica e de incapacidade de gestão da
maioria dos municípios e cidades do Brasil.
Neste momento particular no qual se
enfatiza a necessidade de sistemas mais descentralizados e se valoriza, por
isso mesmo, o papel dos governos locais, dentro de uma concepção legítima de
‘cidades sustentáveis’, é preciso questionar e repensar um processo que, no
caminho contrário, vem criando situações de inviabilidade econômica e
administrativa.
2. A proliferação de municípios no Brasil
A criação de
novos municípios no Brasil é uma prática antiga, que vez por outra desperta a
atenção e a preocupação de alguns setores da sociedade, na medida em que se
constata o exagero das políticas, e dando origem a interessantes matérias
jornalísticas, com títulos sugestivos tais como “Municípios à míngua”, “Farra
das emancipações”, “Pequenos falidos”, “Febre das emancipações”. Uma pesquisa
realizada pelo Banco de Dados Municipais do Instituto Brasileiro de
Administração Municipal (Bremaeker, 1995), mostra que, na década de 1940 foram
criados 315 novos municípios, na década de 1950 foram criados 877, na década de
1970 surgiram mais 1,187 novas unidades municipais, e na década de 90 foram
criados mais 1,007 novos municípios (quadro 1).
Quadro 1
Distribuição dos municípios instalados no Brasil
(1940 a 1997)
Fonte: Elaboraçao própria.
Pelos números
apresentados, vê-se que a criação de municípios não é nenhuma novidade na
tradição política brasileira, caracterizando todo o período (1979-1980) mencionado.
Verifica-se, também que durante o período do regime militar, esse processo
diminuiu um pouco, voltando a intensificar-se a partir de 1990, com o
restabelecimento dos governos democráticos.
Isto nos leva a levantar a tese de
que é exatamente em períodos de mais abertura democrática e com eleições livres
e diretas, que as oportunidades para os pedidos de emancipações municipais
proliferam, demonstrando uma relação direta entre o processo eleitoral e o uso
da bandeira da autonomia municipal como elemento de ação política. E mais que
isso, as articulações de interesse no interior dos legislativos estaduais, o
que explica a emancipação de muitos municípios que não atendem aos requisitos
legais estabelecidos pelas próprias Assembléias Legislativas.
Esta dimensão política da
emancipação municipal é evidente por si só, e tanto é assim que os pedidos de
criação de novos municípios, mesmo submetidos a uma avaliação técnica
preliminar dos órgãos estaduais competentes, terminam por uma aprovação (ou
não) decidida pelos deputados estaduais.
O excessivo número de municípios no
Brasil e, sobretudo a situação de penúria financeira dos mesmos, ensejou a
proposta da Emenda Constitucional nº 15, de 12 de setembro de 1996, detalhada a
seguir, com o objetivo de criar restrições ao surgimento de novos municípios
(Bremaeker, 1996).
3.
A situação financeira dos municípios
No afã de se
criar novos municípios, a dimensão política da questão fala mais alto que a do
aspecto financeiro. O resultado é a emancipação de municípios inviáveis, do
ponto de vista econômico-financeiro, já desde as suas origens, e com todas as
repercussões em cadeia que a falta de sustentação econômica provoca. As
dificuldades financeiras por que passa a quase totalidade dos municípios, são
mais que evidentes. Todos os dias, praticamente, encontramos, na mídia,
notícias à respeito deste assunto. Citamos dois exemplos recentes ; “Municípios
à Míngua” é a manchete do editorial do jornal Estado de
Minas, de 19/09/99,
no qual está citada a denúncia do Presidente da Associação dos Pequenos
Municípios de Minas Gerais, de que 350 prefeituras mineiras de cidades de até
20 mil habitantes estão na eminência de fecharem as suas portas e paralisar
todos os serviços, por falta de dinheiro. “Pequenos e falidos “, é o título de
uma matéria publicada na revista Veja de 7 de julho de 1999, que por si só
já mostra a impossibilidade dos pequenos municípios de dependerem apenas de sua
arrecadação.
É oportuno
registrar que a Constituição de 1988 fortaleceu financeiramente os Municípios,
porém, do ponto de vista legal, este fortalecimento se deu muito mais pela
ampliação das transferências federais e estaduais, do que pelo lado das
receitas tributárias municipais. A partir de 1989, os municípios passaram a
receber 25% do icms (transferência
estadual) (antes recebiam 20%); e viram o Fundo de Participação (fpm) crescer de 17% para 25.5%. Como
conseqüência, entre 1988 e 1998, a arrecadação municipal aumentou, elevando a
participação dessa esfera de governo de 2.9% da carga tributária total para 5.3
% (gráficos 1 e 2).
Gráfico1
Evolução da receita tributária real (1988=100)
Fonte: Fundação Getúlio Vargas (2000).
Gráfico 2
Composição da arrecadação tributária por nível de
governo (% do total)
Fonte: Fundação Getúlio Vargas (2000).
No caso das
transferências, a grande tábua de salvação dos municípios é o fpm (Fundo de Participação dos
Municípios) um bolo de recursos dos governos federais e estaduais que, por lei,
tem que ser dividido entre todas as prefeituras, com base na população. Isto é
verdadeiro, principalmente, para os municípios de pequeno tamanho (com
população inferior a 10 mil habitantes) (Bremaeker, 1995).
Milhares de pequenos municípios e
cidades do Brasil só sobrevivem graças ao Fundo de Participação dos Municípios.
Como afirma o prefeito de Oliveira de Fátima, pequeno município do Estado do
Tocantins, com 711 habitantes, “sem a verba do fpm
a cidade pára”.
Estes pequenos municípios,
geralmente de base econômica tipicamente rural, não possuem uma massa de
contribuintes, quantitativamente e qualitativamente capaz de lhes possibilitar
uma receita tributária expressiva. Além do mais diz Bremaeker: “os tributos que
cabem ao Município cobrar são quase que todos de natureza tipicamente urbana (impostos
sobre serviços (iss); imposto
predial e territorial urbano (iptu);
taxas e até mesmo a contribuição de melhoria). O único tributo que é aplicado
tanto na área rural como urbana é o imposto sobre a transmissão de bens imóveis
(itbi)” (Bremaeker, 1996: 5).
Registra-se que para a maioria dos
municípios brasileiros a arrecadação do iptu
e do iss é difícil de ser
realizada, pois demanda a constituição e atualização de cadastros de
contribuintes e a contratação de pessoal altamente qualificado (quadro 2).
Quadro 2
Composição das receitas dos municípios (1996)
Fonte: Fundação Getúlio Vargas (2000).
Como se vê, fica
evidente a enorme importância da rubrica ‘transferências’ na composição da
receita municipal, destacando-se o fpm
(transferência federal) e o icms
(transferência estadual). Verifica-se, também, que esta estrutura de
arrecadação privilegia os tributos urbanos o que, ao não funcionar, vai
provocar o que estamos chamando de inviabilidade da administração das cidades,
agravada pelo fato das mesmas concentrarem mais de 75% da população brasileira.
Frente a estes dados, surge de forma
natural as seguintes perguntas: Por que isso acontece? Por que os municípios e
cidades não conseguem arrecadar os recursos necessários e ficam dependendo de
transferências dos outros poderes?
Bem, as explicações são várias. Em
primeiro lugar a falta de vontade política de cobrar os tributos, na medida em
que o ‘imposto’ é uma instituição culturalmente impopular no Brasil e a
sonegação uma constante. Para os políticos populistas, rende muito mais
dividendos eleitorais a isenção do que a cobrança de impostos, e não são poucos
os exemplos deste tipo de atitude demagógica no Brasil. Outro fator devidamente
reconhecido é a pobreza generalizada da população o que a torna relativamente
incapaz de pagar tributos.
Acresça-se mais ainda a incapacidade
administrativa das prefeituras para montar um sistema eficiente de arrecadação
fazendária, com falta de pessoal especializado, falta de sistema de informática
e falta de cadastros municipais atualizados e confiáveis.
De maneira mais ordenada e sintética
podemos resumir assim estes fatores determinantes da atual situação
econômica-financeira dos municípios brasileiros:
·
A
tradição de uma ‘economia de endividamento’;
·
Problemas
relacionados à má gestão político-administrativa;
·
ritmo
acelerado de inflação em que o país esteve mergulhado até meados de 1994,
gerando perdas reais nos recursos públicos e uma cultura de orçamentos irreais;
·
Baixo
crescimento do pib, restringindo a
capacidade contribuitiva de pessoas físicas e empresas;
·
Ajustes
macroeconômicos do governo central, principalmente os relacionados ao déficit
público, que através da criação de “fundos”, como foi o Fundo Social de
Emergência, e atualmente o Fundo de Estabilização Fiscal (fef), subtrai receitas de transferências
dos municípios;
·
ambiente
de incertezas que tem permeado as decisões de investimentos, inibindo uma
retomada firme do crescimento econômico;
·
A
inexistência de políticas articuladas entre as esferas de poder, que assegurem
um processo sustentado de desenvolvimento econômico;
·
Os
custos de implantação de um aparato fiscal moderno e eficaz.
Um outro fator
que já foi mencionado linhas atrás, é que o sistema de arrecadação brasileiro é
montado de tal maneira a permitir uma centralização em mãos do governo federal,
mesmo após a Constituição de 1988. Sabe-se que na repartição da arrecadação
tributária nacional, o governo federal tem cerca de 60%; os governos estaduais
cerca de 26%; e os municípios apenas 14% em média. É fácil entender esta
distribuição se considerarmos a história política brasileira, com uma prática
centralizadora muito forte, apesar dos avanços de democratização mais recentes.
Faz parte desta história e prática política, a barganha, que popularizou a norma
do “é dando que se recebe” nas relações do executivo com o congresso nacional;
e do poder central com os governos estaduais e municipais (quadro 3).
Quadro 3
Composição
da receita tributária disponível por
unidade de governo
Fonte: Fundação Getúlio Vargas (2000).
Com relação a
esta delicada e controversa questão da autonomia financeira municipal, é
possível pensar que existe uma lógica implícita no comportamento da grande
maioria dos pequenos municípios, guiada por um cálculo de custo e benefício, ou
seja, o custo econômico e político para montar um sistema de arrecadação
tributária é muito alto, frente ao que isso poderia representar em termos da
arrecadação total do município.
Ainda como ponto para reflexão
deve-se ponderar se uma autonomia financeira e administrativa dos municípios,
de acordo com a geografia e cultura política brasileira, seria viável, sem
ameaçar o controle nacional sobre a gestão do seu território. Se partirmos da
idéia de que a soma das partes não define o todo, neste caso, que a soma
aritmética de municípios não definem o país, a hipótese fica evidente. Em
outras palavras; qual seria o meio termo ideal entre um excesso de centralismo
e uma proliferação de micro-unidades com a perda da unidade nacional? Talvez
uma alternativa fosse a de revalorização do nível intermédio de administração
(o regional) que foi tão importante em décadas anteriores.
Neste sentido de identificar
alternativas intermediárias entre o nível central de administração e o nível
local, merece lembrança a revalorização teórica e prática das ‘cidades médias’
, o que tem relação direta com o modelo atual de descentralização político
administrativa vigente em quase todos os países latino-americanos e nos quais
os chamados centros intermediários passam a desempenhar um papel determinante,
enquanto espaços privilegiados de crescimento econômico e de aplicação de
políticas de combate à pobreza e de sustentabilidade ambiental (Carvalho,
2000).
O fato é que a hegemonia do poder
municipal no cenário atual tende a “homogeneizar a cotidianiedade”, e o que é
mais grave, devido aos efeitos desiguais que a globalização produz, a difundir
a autonomia da pobreza (Carrión, 1999).
4. A situação em Minas Gerais
O Estado de Minas
Gerais, que não foge a estas regras, é o nosso estudo de caso sobre o qual já
tivemos a oportunidade de estudar a questão da viabilidade municipal em duas
ocasiões. Como já foi feita referência anterior, em 12/09/96, o Congresso
nacional, nos termos do parágrafo 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgou
a Emenda Constitucional nº 15, dando redação ao parágrafo 4º do art. 18. Por
essa emenda foi estabelecido em seu artigo único:
Artigo único. O
parágrafo 4º do artigo 18 da Constituição Federal passa a vigorar com a
seguinte redação :
Art. 18.
Parágrafo 4º. A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de
municípios far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por lei
complementar federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às
populações dos Municípios envolvidos, após a divulgação dos Estudos de
Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei.
Minas Gerais é um
estudo de caso peculiar, pois é o estado brasileiro que tem mais municípios :
até 1960 tinha 485 unidades; em 1962 foram criados 237 novos municípios,
totalizando 722 unidades; em 1992 este total subiu para 756 municípios; e em
1995 foi para 853 municípios.
A Lei nº 2,764 de 30 de dezembro de
1962, foi a que criou a maior número de municípios, correspondendo a um aumento
de cerca de 50% sobre o total anterior. A criação de 237 novos municípios, num
só ano, não se deu em função de algum eventual surto de urbanização que então
estivesse ocorrendo no estado, mas sim em função do sistema de tributos
partilhados que vigorava na época, com cotas iguais para todos os municípios.
Assim, os governos Estaduais estimulavam a criação de novos municípios para
arrecadar em mais recursos do Governo Federal.
A mentalidade dominante então, era a
de que quanto maior o número de municípios para recorrer às fontes de recursos
federais, tanto melhor, ainda que sem atender as condições legais para a
emancipação.
Frente a essas circunstâncias, fica
fácil deduzir que uma grande parte dos municípios foi emancipada precocemente,
sem reunir as reais condições de viabilidade econômica, política e
administrativa, como se demostrará a seguir. O mesmo se aplica, e com muito
mais propriedade, às cidades, sedes municipais, onde vão desaguar todos os
males decorrentes de um processo falseado.
4.1 Os requisitos legais para a criação de municípios
Como se
mencionou, um dos princípios básicos para o processo de emancipação e criação
de município no Brasil é a apresentação de um relatório de viabilidade, a ser
definido por cada estado. Em Minas Gerais, de acordo com a Lei Complementar nº
19/91, de 17/07/91, são necessários os seguintes requisitos para que um
município seja criado:
i. População superior a 7,000 habitantes;
ii. Número mínimo de 3,000 eleitores;
iii. Número de moradias superior a 400;
iv. Núcleo urbano constituído, com edificações para
instalação do governo municipal, com seus órgãos administrativos;
v. Serviços públicos de comunicação, energia,
água, posto de saúde, escolas públicas e cemitério;
vi. Arrecadação tributária mínima a ser anualmente
fixada.
Não se trata,
portanto, e de acordo com o espírito da lei, de uma emancipação meramente
econômica-financeira mas, também, com população adequada, com infra-estrutura,
e com um contingente de eleitores que possam viabilizar o processo
político-eleitoral.
Em tese, portanto, os municípios que
não atendessem a essas condições legais não deveriam ser criados, nem tampouco
existirem. No entanto a realidade é bem outra. Com base em estudos que fizemos
em 1985, atualizado com dados de 1992, podemos verificar e avaliar a viabilidade
dos municípios mineiros, nesses dois momentos, com relação aos requisitos
legais citados.
Fazendo um quadro comparativo entre
os dois estudos mencionados, e considerando somente os itens de população,
eleitores, moradias e arrecadação, temos a seguinte situação (quadro 4).
Quadro 4
Minas Gerais-Municípios que não atendem aos
requisitos legais para emancipação
Fonte: elaboração própria.
A primeira
observação que deve ser feita a respeito deste quadro é a de que em 1985 os
requisitos não eram exatamente os mesmos de 1992 e que, comparativamente, eram
mais rigorosos. Por exemplo: o número mínimo de população era de 10 mil pessoas
e a arrecadação exigida era também superior, o que explica a diferença entre
dados registrados para os dois anos.
Na realidade o que se observa com o
passar dos anos é um aumento da liberalidade legal, com uma diminuição dos
patamares dos requisitos legais, demonstrando uma prevalência dos critérios
políticos sobre critérios técnicos, conforme já se mencionou em linhas anteriores.
Relembre-se que a avaliação técnica geralmente é feita por um órgão da
administração estadual, sem poder de decisão, o que acaba acontecendo depois de
trâmites políticos, realizados nas Assembléias Legislativas que, via de regra,
contrariam os pareceres técnicos. E mesmo que não fosse assim, as Assembléias
Estaduais têm a prerrogativa de revogar as emancipações de municípios que, em
algum momento, se mostrem inviáveis, o que, obviamente, é difícil de acontecer.
No caso específico da arrecadação,
fator chave para o sucesso de qualquer administração local, deve-se registrar
que no ano de 1992, o montante exigido correspondia a cerca de 6.5 salários
mínimos da época, por ano, o que significa um orçamento que não cobre se quer o
pagamento do pessoal necessário para a administração municipal.
Este é o quadro desolador da
realidade da maior parte dos municípios brasileiros, emancipados sem critérios
técnicos e a partir dele pode-se imaginar as inúmeras dificuldades
administrativas das cidades e municípios, principalmente se considerarmos que
muitos não atendem a nenhum dos requisitos legais, ou seja, são ‘totalmente
inviáveis’.
Certamente que esse não é um quadro
exclusivo do Estado de Minas Gerais. Pelo contrário, ele caracteriza a maioria
dos estados brasileiros, onde a tradição política é semelhante e com certeza,
grande parte da América Latina.
Este panorama coloca em xeque a
questão da autonomia municipal, da sustentabilidade econômica e social das
cidades e das vantagens das crescentes responsabilidades confiadas às
prefeituras e aos governos regionais.
Como se falar em sustentabilidade,
em seu sentido mais amplo, daquilo que não tem sustentabilidade? A
sustentabilidade defendida de maneira geral e irrestrita, pode significar uma
perigosa anuência com um statu quo que, na realidade, precisa ser
modificado e dinamizado, para permitir as mínimas condições de autonomia
econômica e administrativa para as nossas cidades e municípios. Como já foi
dito em linhas anteriores, este processo pode levar a uma generalização da
autonomia com pobreza.
Todos desejamos cidades
auto-sustentáveis, porém é preciso que elas tenham um total de população
possível de sustentar as atividades econômicas; que tenham um sistema de
arrecadação eficiente; que tenham um corpo de dirigentes e de funcionários
capacitados para a gestão dos negócios públicos; que tenham canais de interação
entre governo e comunidade efetivos e que possam ofertar uma condição de vida
razoável para os seus moradores.
Mais que isso, há de se mudar a estrutura
de administração pública do país, na qual as decisões políticas e,
principalmente, econômicas, ainda estão extremamente centralizadas pelo governo
federal.
Sem essas condições, a
sustentabilidade, em todos os níveis de administração pública, não passará de
um discurso inteiramente apartado dos resultados práticos.
5. Por uma gestão municipal responsável
A luz destes
antecedentes, parece ter ficado claro a difícil situação fiscal e
administrativa da maioria dos municípios brasileiros, resultado de um processo
historicamente desvirtuado e irresponsável, conduzido por uma comunidade que
solicita a sua emancipação política a qualquer custo e autoridades políticas
que fazem vista grossa e que autorizam estas emancipações.
O resultado é o que se relatou: uma
multiplicação de prefeituras de minúsculas cidades, que arrecadam menos de 10%
de suas receitas e cujos gastos geralmente superam a arrecadação, levando-os ao
endividamento.
A falta crônica de recursos
próprios, a má gestão política e econômica, e a complacência das autoridades do
executivo, do legislativo e até mesmo do judiciário, criaram este panorama de
completo descontrole das contas municipais.
O desequilíbrio fiscal, com gastos
sistematicamente superiores às receitas, caracterizou a administração pública
do Brasil, sem um controle rigoroso, até muito recentemente, com graves
conseqüências econômicas (endividamento e carga tributárias, por exemplo) e
sociais (deficiência dos serviços de saúde e educação, por exemplo).
Frente a este descontrole das
finanças públicas em todos os níveis da administração pública brasileira, o
governo criou a Lei de Responsabilidade Fiscal (lrf),
uma accountability à brasileira, que é um instrumento para auxiliar e
orientar os governantes a gerir os recursos públicos dentro de um marco de
regras claras e precisas, aplicadas a todos os gestores de recursos públicos e
em todas as esferas de governo, relativas à gestão da receita e da despesa
públicas, ao endividamento e à gestão do patrimônio público.
A lrf
consagra a transparência da gestão como mecanismo de controle social, através
da publicação de relatórios e demonstrativos de execução orçamentária,
apresentando ao contribuinte a utilização dos recursos que ele coloca à
disposição dos governantes.
Além
de fixar regras e limites para as despesas públicas, a lrf ainda determina que sejam criadas metas para controlar
receitas e despesas. A “responsabilização” é severa e o governante que não
cumprir a Lei estará sujeito a uma série de penalidades.
Há dois tipos de sanções: as
institucionais, previstas na própria lrf,
e as pessoais, previstas na Lei Ordinária que trata dos Crimes de
Responsabilidade Fiscal como, por exemplo, a perda do cargo; a proibição de
exercer emprego público; pagamento de multas e até a prisão.
A lrf
afeta aos governos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
que a partir de agora estão se adaptando aos rigores legais, enquadrando as
administrações ao novo código de conduta.
Neste primeiro momento, os
municípios estão encontrando uma grande dificuldade para obedecer a lrf, o que tem gerado um alarme geral e
muitas reclamações dos representantes municipais, relativamente a
impossibilidade de obedecer o regulamento, o que é procedente, uma vez que
nunca estiveram submetidos a um sistema de controle mais rígido.
A curto prazo, portanto, o rigor da
Lei vai agravar a já complicada situação fiscal e administrativa da maioria dos
municípios, e em especial dos pequenos, acostumados a um sistema de benevolência,
de endividamento, de repasses intergovernamentais, de falta de controle de suas
contas e de uma responsabilização mais rigorosa.
A médio e longo prazo se espera uma
progressiva obediência a Lei e uma adequação das despesas às receitas, com uma
natural depuração do quadro municipal do Brasil, tornando clara a inviabilidade
de muitos municípios e a sobrevivência dos mais fortes.
6. Conclusão
Prestigiar os
governos locais e as cidades, tornando-os auto-sustentáveis, não só é um
princípio democrático, como também vem de encontro aos postulados básicos do
modelo político-administrativo vigente na atualidade, no qual a
descentralização é um imperativo.
Frente a esses novos paradigmas
impositivos, os governos reformulam as suas normas legais, de forma a permitir
o atendimento dos novos anseios de uma maior participação dos governos locais
na estrutura política e econômica nacional.
Desta forma é possível estabelecer
uma clara articulação entre a ‘reforma do Estado’, os processos de
descentralização administrativa, e o novo papel que os municípios e cidades
devem assumir neste novo contexto, quase que inquestionável, uma vez que sugere
mais democracia, mais participação cidadã, e mais eficiência geral do sistema.
Este legítimo anseio de autonomia,
aliado ao oportunismo de políticos nem sempre bem intencionados, cria a
oportunidade para o surgimento de uma verdadeira ‘indústria de municípios’ no
Brasil, quase sempre administrada sem critérios técnicos. Uma legislação
imperfeita e guiada por critérios meramente políticos possibilita (e até
estimula) a emancipação de uma quantidade enorme de pequenos municípios e
cidades, sem o atendimento dos padrões de viabilidade legais exigidos.
Decorre daí, que aquilo de deveria
ser, em tese, uma prática democraticamente saudável, acaba por se converter num
processo político viciado, responsável pela insustentabilidade de várias
administrações locais, sufocadas por compromissos e expectativas muito
superiores da sua capacidade de gestão. Sem uma proposta real de descentralização
e de reforma tributária, o processo de criação de novos municípios e cidades,
pode potenciar todos os vícios que carrega e negar todas as virtudes que tem.
Depois de anos de permanência desta
mentalidade irresponsável, que levou a este estado de insolvência municipal, o
governo federal pressionado pelas novas regras internacionais que exigem um
equilíbrio das contas públicas, promulgou uma ‘Lei de Responsabilidade Fiscal”
que normaliza os gastos nos três níveis de governo.
A aplicação desta lei já começa a
trazer uma série de dificuldades para os municípios, acostumados aos gastos
incontrolados, ao endividamento e às transferências de recursos. Existe um lado
salutar neste caso, pois se espera que com o passar do tempo, os municípios
façam uma adequação de suas despesas com as suas receitas limitando, entre
outros, os gastos com pessoal, por exemplo.
No nosso entendimento é chegada a
hora da verdade e da separação dos municípios realmente viáveis, daqueles que
foram criados de forma artificial e que, em tese, terão que passar por um
processo de revisão política-administrativa, aliás já prevista em lei, mas
nunca concretizada.
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Enviado:
7 de marzo de 2002
Aceptado: 25 de marzo de 2002
[1] Por definição do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (ibge)
toda a sede de município é uma cidade.